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Tribunal Constitucional julga inconstitucional norma do Estatuto da ERS relativa a recurso das decisões


«Acórdão (extrato) n.º 728/2017

Processo n.º 773/16

14 – Em face do exposto, decide-se:

a) Julgar inconstitucional o n.º 5 do artigo 67.º do Estatuto da Entidade Reguladora da Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto, por violação da alínea b) do n.º 1, do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa.

e, em consequência,

b) Não conceder provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida, ainda que com fundamentação diversa, nos termos constantes na parte final do artigo 79.º-C da LTC.

Sem custas judiciais, por não serem legalmente devidas.

Lisboa, 15 de novembro de 2017. – Maria Clara Sottomayor (de acordo com declaração de voto anexa) – Gonçalo Almeida Ribeiro – Joana Fernandes Costa – Maria José Rangel de Mesquita (vencida nos termos da declaração anexa) – João Pedro Caupers (vencido pelas razões constante da declaração de voto da Cons. Maria José Rangel de Mesquita).

Texto integral do Acórdão disponível no sítio eletrónico do Tribunal Constitucional:

(http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20170728.html?impressao=1)»


«ACÓRDÃO Nº 728/2017

Processo n.º 773/2016

3.ª Secção

Relatora: Conselheira Maria Clara Sottomayor

 

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

 

I – Relatório

  1. Entidade Reguladora da Saúde – ERS instaurou contra A., psicóloga clínica que exerce a sua profissão em consultório integrado num estabelecimento coletivo de saúde (Clínica), processo de contraordenação, nos termos dos artigos 4.º, 5.º, 10.º e 22.º do Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto e do artigo 15.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 371/2007.

Em concreto, imputou aquela entidade reguladora à aqui Recorrida a prática das seguintes contraordenações: i) inobservância do dever de inscrição do estabelecimento prestador de cuidados de saúde (psicologia) no registo da Entidade Reguladora da Saúde – ERS (artigos 61.º, n.º 2, alínea a) e 26.º, n.º 3, do Estatuto da ERS) e ii) não disponibilização de livro de reclamações no estabelecimento a que respeita a atividade (artigos 3.º, n.º 1, alínea a) e 9.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 156/2006, de 15 de setembro).

Por decisão datada de 7 de março de 2016, a ERS aplicou à Recorrida a coima única de € 1.400 pela prática, em concurso, das duas contraordenações acima referidas (fls. 37).

Inconformada com tal decisão, a arguida apresentou recurso de impugnação judicial no Tribunal da Concorrência, Supervisão e Regulação. O recurso mereceu despacho de admissão (fls. 79).

Além disso, foi proferido pelo juiz a quo, após exercício do contraditório, despacho recusando a aplicação do artigo 67.º, n.º 5, dos Estatutos da ERS – na parte em que condiciona a obtenção de efeito suspensivo do recurso à prestação de caução em substituição da coima – por violação do disposto nos artigos 2.º, 16.º, 17.º, 18.º, 20.º, n.º 5 e 32.º, n.º 2 e n.º 10, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Em consequência, o Tribunal da Concorrência determinou o prosseguimento dos autos com a atribuição de efeito suspensivo ao recurso de impugnação interposto, sem prestação de caução, nos termos constantes do artigo 59.º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas (RGCOC) e do artigo 408.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal (CPP), aplicável por remissão do artigo 41.º, n.º 1, do RGCOC.

O tribunal recorrido notificou a arguida, para esta, querendo, apresentar, no prazo de dez dias, prova documental quanto à sua situação económica.

Em resposta, a arguida, Alexandra Risa de Oliveira, veio apresentar a declaração de IRS do ano de 2015, na qual constava como valor do rendimento anual do consultório, 11.347,70 euros, tendo ainda declarado que em 2016 auferiu 11.683,10 euros, que o marido é artista plástico e não tem qualquer rendimento, e que o agregado familiar, composto por três pessoas, tem a seu cargo uma filha de 18 anos, estudante (fls. 124 a 135).

Neste enquadramento, o Ministério Público apresentou o seguinte requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional:

«O Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal vem, ao abrigo do disposto nas normas dos artigos 280º, nº 1, a), da CRP, 70º, nº 1, a), 72º, nº 1, a) e nº 3 da Lei 28/82, de 15/11 (Lei do Tribunal Constitucional), alterada pelas Leis 85/89, de 07/09 e 13-A/98, de 26/02, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do despacho judicial proferido a 12/07/2016, que consta de fls. 96 a 114, por via do qual o tribunal desaplicou a norma do artigo 67, nº 5 dos Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde publicados em anexo ao DL 126/2014, de 22/08, por entender que a mesma viola as normas dos artigos 2º, 16º, 17º, 18º, 20º, nº 5, 32º, nº 2 e 10 da CRP.

O recurso tem efeito suspensivo e sobe nos próprios autos – art. 78º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional.

As alegações serão produzidas no TC, nos termos do disposto no art. 79º da Lei do Tribunal Constitucional.

O MP junto deste TCRS pronunciou-se sobre a questão da constitucionalidade, como consta da peça apresentada a 17/06/2016 que consta de fls. 86 a 90.

Como precedente que corrobora a tese contrária à perfilhada pelo tribunal, confrontar o Ac. do TC 376/2016 que julgou não inconstitucional a norma do art. 84º, nº 4 e 5, da Lei 19/2012, de 08/05, segundo a qual a impugnação de decisões da AdC que apliquem coimas tem como regra efeito devolutivo, apenas lhe podendo ser atribuído efeito suspensivo quando a execução da decisão cause ao visado prejuízo considerável e este preste caução».  

 

  1. Admitido o recurso neste Tribunal, veio o Ministério Público alegar, propugnando pela constitucionalidade da norma e formulando as seguintes conclusões (fls. 206 a 243):

«1ª. O presente recurso do Ministério Público vem interposto do despacho do 1º Juízo do Tribunal de Concorrência, Regulação e Supervisão, de 12 de Julho de 2016, proferido no Proc. 143/16.9YUSTR, enquanto decidiu «declarar a inconstitucionalidade material e, em consequência, recusar a aplicação do artigo 67.º, n.º 5 dos Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de Agosto, com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 2.º, 16.º, 17.º, 18.º, 20.º, n.º 5, 32.º, n.º 2 e 10, todos da Constituição da República Portuguesa» atribuindo efeito suspensivo, sem determinar a prestação de caução, ao recurso da decisão final sancionatória da Entidade Reguladora da Saúde (ERS).

2ª. O objeto do presente recurso de constitucionalidade deverá restringir-se à norma contida no nº 5 do art. 67º dos Estatutos da ERS, com o sentido de que a impugnação interposta de decisões da ERS que apliquem coima tem, em regra, efeito devolutivo, apenas lhe podendo ser atribuído efeito suspensivo quando a execução da decisão cause ao visado prejuízo considerável e este preste efetivamente caução, em sua substituição, no prazo fixado pelo tribunal, sendo-lhe estranha a questão da exigência da prestação de caução, nos termos ai previstos, sem que esteja acautelada a potencial situação de insuficiência de bens económicos.

3ª. O DL 126/2014, de 22 de Agosto, diploma sem alterações até à data, procede a repetida reestruturação da ERS, à luz do regime estabelecido na lei-quadro das entidades reguladoras, que fora aprovada em anexo à Lei 67/2013, de 28 de Agosto, revogando o DL 127/2009, de 27 de Maio e aprovando os novos Estatutos (respetivamente, arts. 6º e 2º).

4ª. A atribuição, como regra, de efeito meramente devolutivo ao recurso de decisões sancionatórias proferidas pela ERS em processos contraordenacionais vai ao arrepio do regime geral nos domínios contraordenacional e penal, mas encontra paralelismo no regime de recursos das decisões de outras entidades administrativas independentes e, na administração direta do Estado, de recursos das sentenças, em matéria de coimas aplicadas pela Administração Tributária e Aduaneira.

5ª. É sobre o novo regime do recurso, tal como passou a constar do nº 5 do art. 67º dos Estatutos da ERS, que incide o juízo de inconstitucionalidade expresso na decisão recorrida.

6ª. Tal juízo assenta em dois distintos fundamentos, ambos igualmente dimensionados à luz do princípio da proporcionalidade (art. 18º, nº 2 da Constituição): (i) violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, por desproporcionada restrição do mesmo – arts. 20º, nº 5 e 18º, nº 2 da Constituição e (ii) violação do princípio de presunção de inocência – art. 32º, nº 2 da Constituição.

7ª. A declaração de inconstitucionalidade contida na decisão recorrida convoca cumulativamente os arts. 2º (Estado de direito democrático), 16º (âmbito e sentido dos direitos fundamentais) e 17º (regime dos direitos, liberdades e garantias) da Constituição – a operada convocação, contudo, na economia da decisão recorrida, conforma-se como mero corolário das proposições anteriormente estabelecidas, quanto à violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, por desproporcionada restrição do mesmo e à violação do princípio de presunção de inocência.

8ª. No que respeita à declarada violação do princípio de presunção de inocência, a decisão recorrida expressamente toma  «como referência de análise o acórdão do Tribunal Constitucional n° 198/90», embora admitindo «que neste aresto estava em causa uma situação diferente e mais flagrante do que a solução normativa em análise».

9ª. «Constitui afirmação recorrente na jurisprudência do Tribunal Constitucional a da não aplicabilidade direta e global aos processos contra ordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal», completada tal afirmação com «a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal».

10ª. Sufragada na jurisprudência constitucional a aplicação do princípio da presunção de inocência do arguido, no seu núcleo essencial, a demais procedimentos sancionatórios, desde logo no domínio disciplinar, como no caso do Ac. 198/90, referenciado na decisão recorrida, mas também, no que ora diretamente releva, no domínio contraordenacional.

11ª. O referenciado Ac. 198/90, para declarar «inconstitucional a norma do artigo 37.º do Regulamento Disciplinar aprovado pelo Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, aplicável ao pessoal da Caixa Geral de Depósitos, na parte em que permite a perda total do vencimento do funcionário “desligado do serviço” por contra ele haver sido instaurado processo disciplinar», entendeu que tal regime «além de se traduzir na antecipação de um quadro de efeitos semelhantes aos da pena disciplinar de demissão, revela-se também afrontador do princípio da proporcionalidade postulado pelo princípio do Estado de direito democrático, dada a manifesta desconformidade entre a medida cautelar imposta e o fim que através dela se pretendia atingir».

12ª. Situação diferente – e sem paralelismo com a dos autos.

13ª. Sabendo-se, embora, que «não é fácil determinar o sentido da presunção de inocência do arguido» e tendo-se o mesmo princípio, no seu núcleo essencial, a par do direito de defesa, como aplicável ao processo contraordenacional, também enquanto «simples irradiação para esse domínio sancionatório de requisitos constitutivos do Estado de direito democrático», não se dimensionando o específico regime de recurso em causa, nos termos estabelecidos no nº 5 do art. 67º dos Estatutos da ERS, como medida cautelar ou antecipatória, não se confronta com a apontada questão de inconstitucionalidade, nem através dele pode de algum modo ver-se presumido o cometimento da infração.

14ª. Como se observa no Acórdão do STA, de 15 de Maio de 2013, Proc. 665/13, no caso paralelo da norma contida no art. 84º do RGIT – havendo, relativamente a esse, uma diferença de grau no que respeita à possibilidade da prestação de garantia para evitar a executoriedade da decisão de aplicação de coima pela ERS –, «a prestação de garantia emerge como um ónus para o recorrente que pretenda obter o efeito suspensivo do recurso, que leva a questão da eventual desconformidade do preceito a transferir-se para um juízo sobre a avaliação da adequação de tal ónus, à luz das exigências do princípio da proporcionalidade, tendo em conta o interesse público que presidiu à adoção de tal solução».

15ª. É, pois, no quadro do direito à tutela jurisdicional efetiva, nele convocado o princípio da proporcionalidade (arts. 20º, nº 5 e 18º, nº 2 da Constituição) – tal como primeiramente afirmado na decisão recorrida –, bem como da garantia de impugnação dos atos administrativos sancionatórios perante os tribunais (art. 268º, n.º 4 da Constituição), que a presente questão de constitucionalidade haverá de ser dirimida.

16ª. Importa na matéria ter-se presente que, nos termos do nº 3 do art. 67º dos Estatutos da ERS, o Tribunal «conhece com plena jurisdição dos recursos interpostos das decisões em que tenha sido fixada pela ERS uma coima ou uma sanção acessória, podendo reduzir ou aumentar a coima ou alterar a sanção acessória».

17ª. Sendo que a abertura da impugnação judicial não se conforma, no caso, a um recurso de mera legalidade ou de cassação, mas de plena jurisdição, deve assinalar-se, em contraponto, e à luz da jurisprudência constitucional, a ampla margem de modelação do regime por parte do legislador ordinário.

18ª. Pontuadas as limitações à liberdade de conformação do regime de impugnação judicial de decisões administrativas sancionatórias, por parte do legislador ordinário, não pode constitucionalmente validar-se a tese, expressa na decisão recorrida, de que «a decisão impugnada, por via da impugnação judicial, adquira um valor meramente enunciativo» e de que, a essa luz e como «corolário irrenunciável» do regime de plena jurisdição, «valendo apenas como imputação fática e legal, tal como está consagrado no art.º 62.º, n.º 1, do R.G.C.O.».

19ª. O regime impugnatório estabelecido nas normas em causa não deve ser unidimensionado como medida cautelar ou antecipatória, antes como resultado, por parte do legislador, «de uma perspetiva global que tenha [teve] em conta a multiplicidade de interesses em causa, alguns deles conflituantes entre si».

20ª. O regime contido no nº 5 do art. 67º dos Estatutos da ERS, em verdadeira alternativa à imediata exigência de pagamento, faculta ao visado a não efetiva ablação do seu património, mediante a prestação de uma garantia de boa cobrança futura.

21ª. Tal faculdade é concedida ao visado sempre que a «execução da decisão lhe cause prejuízo considerável» (nº 5 do art. 67º, cit.).

22ª. Inexiste impedimento, mas balizada restrição, ao exercício do direito de impugnação por parte do visado: pretendendo este, com a impugnação, a destruição da imediata executoriedade do ato – vingando entre nós um sistema de administração executiva, com o reconhecimento da primazia do interesse público sobre o interesse privado –, fica condicionado à verificação de determinado requisito (causar-lhe a execução da decisão prejuízo considerável) e ao cumprimento de um ónus (prestação de caução).

23ª. Tal conformação do regime da impugnação adequada e justificadamente radica na natureza e atribuições cometidas à ERS, enquanto entidade administrativa independente constitucionalmente legitimada (art. 267º, nº 3 da Constituição), em vista das incumbências prioritárias do Estado de garantir o acesso de todos os cidadãos aos cuidados de saúde (art. 64º, nº 3 da Constituição) e, no sector, a transparência e concorrência do mercado, com proteção dos utentes [Constituição, arts. 81º, alíneas f) e i) e 99º, alíneas a) e e)].

24ª.Tem por missão o exercício de funções de regulação, de supervisão e de promoção e defesa da concorrência respeitantes às atividades económicas na área da saúde dos setores privado, público, cooperativo e social, competindo-lhe, no que respeita à supervisão dos estabelecimentos prestadores dos cuidados de saúde, garantir o cumprimento dos requisitos de exercício da atividade e de funcionamento dos mesmos, a realização dos direitos relativos ao acesso aos cuidados de saúde, à prestação de cuidados de saúde de qualidade, bem como dos demais direitos dos utentes e a legalidade e transparência das relações económicas entre os diversos operadores, entidades financiadoras e utentes (arts. 4º e 5º dos Estatutos).

25ª. «Antecipa-se, sem dificuldade, que o legislador, na modelação do regime de impugnação das decisões sancionatórias proferidas por tais entidades administrativas, tenha ponderado a necessidade de conferir maior eficácia aos respetivos poderes sancionatórios, de modo a garantir, no plano substantivo, uma maior proteção aos valores e bens tutelados nos específicos domínios normativos em que atuam. Atribuindo, em regra, efeito devolutivo ao recurso, e condicionando o efeito suspensivo à prestação de caução e à existência de “prejuízo considerável”, procura-se minimizar os recursos judiciais infundados cujo objetivo seja protelar no tempo o pagamento da coima. Se conjugarmos a opção legal de atribuir à impugnação efeito meramente devolutivo, com o afastamento da regra da proibição da reformatio in pejus vigente no regime geral das contraordenações, (…) maior evidência assume o propósito desincentivador subjacente à nova regulamentação legal sobre a matéria» (Ac. 376/16).

26ª. Os procedimentos sancionatórios da competência da ERS «respeitam o princípio da audiência e defesa dos infratores, o princípio do contraditório e demais princípios constantes da lei, designadamente do regime geral do ilícito de mera ordenação social» [Estatutos, arts. 22º, nº 1 e 24º, alínea b)], em matéria de produção de prova, «constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a demonstração da existência ou inexistência da infração, a punibilidade ou não punibilidade do visado pelo processo, a determinação da sanção aplicável e a medida da coima», sendo «admissíveis as provas que não forem proibidas por lei» (art. 25º, nºs. 1 e 2). As contraordenações e as coimas aplicáveis estão previstas nos arts. 61º e 62º, os critérios de determinação da medida da coima estabelecidos no art. 63º e o regime de prescrição no art. 64º, todos igualmente dos mesmos Estatutos.

27ª. Relativamente ao regime estabelecido no nº 5 do art. 67º dos Estatutos da ERS, dever-se-á considerar que, «enquanto medida necessária e adequada a garantir a tutela de bens jurídicos com dignidade constitucional (…), bem como a celeridade e eficiência da reação sancionatória no caso de lesão desses bens jurídicos tutelados, não poderá ser entendido como uma restrição desproporcional ao direito de impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória, à luz dos critérios previstos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição».

28ª. Presente a margem de liberdade de conformação por parte do legislador ordinário em matéria de impugnação de atos administrativos, o descrito balanceamento em causa entre os valores da tutela da posição jurídica do visado e o valor da realização de determinadas incumbências prioritárias do Estado, constitucionalmente exigidas e prosseguidas por entidade administrativa independente, não sendo impediente, não se mostra desrazoavelmente obstaculizador ao mais amplo exercício do direito de impugnação.

Termos em que o douto despacho recorrido deverá ser reformulado, tendo em conta o juízo que vier a ser proferido quanto à questão de constitucionalidade, nos termos ora propugnados, para tanto concedendo-se provimento ao recurso».

  1. Também a ERS apresentou alegações neste Tribunal, formulando as seguintes conclusões (fls. 245 a 267):

«A – Não se verifica a violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva constitucionalmente consagrado invocada pelo douto Tribunal a quo uma vez que a norma em causa não prevê, em momento algum, a necessidade de prestar caução (ou proceder ao pagamento da coima) como condição da apresentação de recurso, mas apenas e tão só como elemento determinante da fixação do efeito a atribuir ao recurso.

B – A fixação desse efeito – devolutivo ou suspensivo – não produz qualquer impacto no direito do arguido em processo contraordenacional a ver a legalidade da decisão de coima (ou outra sanção) aplicada sindicada por um tribunal.

C – A recorrente subscreve a dupla conclusão do Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 376/2016 (Proc. 1094/2015 – 3.ª secção), segundo o qual, por um lado “(…)não se afigura injustificado ou desrazoável a adoção, como regra geral, do efeito devolutivo da impugnação interposta das decisões da Autoridade da Concorrência que apliquem coimas. É uma medida normativa que garante maior eficácia às decisões sancionatórias, dissuadindo comportamentos processuais que, por infundados e dilatórios, comprometem a defesa efetiva desses valores”.

D – Por outro lado, “a possibilidade legalmente prevista de o arguido requerer a atribuição de efeito suspensivo quando a execução da decisão condenatória lhe causa prejuízo considerável, mediante prestação de caução (artigo 84.º, n.º 5, da Lei da Concorrência), pela forma e montante julgados adequados ao caso concreto pelo tribunal, permite acautelar os ponderados riscos de lesão efetiva do direito, em caso de procedência do recurso, sem comprometer a efetividade da sanção, no caso da sua improcedência”.

E – A fixação do efeito do recurso e os respetivos termos e procedimento não estão, pelo menos no caso concreto, dentro do âmbito de proteção da norma do artigo 20.º n.º 4 da CRP, pelo que o n.º 5 do artigo 67.º dos Estatutos da ERS não viola os direitos constitucionalmente consagrados naquela norma.

F – Da mesma forma, não é defensável que o artigo em crise (artigo 67.º, n.º5, do Decreto-lei n.º 126/2014, de 22 de agosto) constitua uma intervenção restritiva do direito a tutela jurisdicional efetiva do arguido-recorrente, constitucionalmente previsto no artigo 20.º.

G – A alteração de paradigma quanto ao efeito do recurso em processo contraordenacional da ERS insere-se numa opção legislativa mais ampla, que abrangeu as regras aplicáveis à maioria dos procedimentos conduzidos pelas entidades reguladoras abrangidas pela Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto, e através da qual o legislador foi forjando um regime especial de contraordenações para as autoridades reguladoras, aplicando soluções idênticas nos Estatutos ou regimes sancionatórios de algumas delas.

H – A razão para esta alteração de paradigma está relacionada com as especiais funções de ordenação do mercado que incumbem as estas entidades, funções que demandam um modelo de atuação mais exigente e complexo, que abrange áreas em que estão em causa a prestação de serviços de carácter essencial e geral (saúde, energia, telecomunicações) e que por isso justificam a necessidade de se garantir o cumprimento das sanções aplicadas, sem prejuízo, claro está, do respetivo direito ao recurso e à tutela jurisdicional efetiva, bem como à presunção de inocência.

I – Tal solução nem sequer representa uma solução inovadora quanto as autoridades reguladoras, conhecendo-se outros domínios em que se estabelece o efeito devolutivo do recurso/reação judicial como regra e o efeito suspensivo como exceção dependente da prestação da caução.

J – A solução adotada pelo legislador no n.º 5 do artigo 67.º do Decreto-lei n.º 126/2014, de 22 de Agosto é, por isso, uma solução necessária e adequada, não violando qualquer parâmetro do princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado.

K – Não merece provimento o argumento pelo qual o Tribunal a quo funda a declaração da inconstitucionalidade da norma em crise com base na violação do princípio da presunção da inocência previsto e protegido pelo artigo 32.º, n.º 2 da CRP.

L – O que garante efetivamente o princípio da presunção de inocência em processo contraordenacional é o direito ao recurso, pelo que no processo contraordenacional regido pelas regras especiais previstas nos Estatutos da ERS e nas regras do Regime Geral das Contraordenações, a presunção de inocência do arguido só cessa com a falta de impugnação da decisão condenatória ou, caso esta exista, com o trânsito em julgado da decisão que ponha termo ao processo.

M – O facto de, por via do efeito devolutivo do recurso, o arguido poder ser obrigado a proceder ao pagamento da coima na pendência do processo em nada belisca o seu direito à presunção de inocência, já que a definitividade desse pagamento está naturalmente dependente do resultado final do processo impugnatório – que, em caso de provimento, dará lugar à devolução do montante pago.

N – O princípio da presunção da inocência embora não sendo uma “conquista privativa do processo criminal”, aplicando-se por isso, de igual modo, a processos sancionatórios disciplinares e contraordenacionais – mormente ao “nível do ónus da prova e do princípio in dubio pro reo” -, não vale para “as decisões administrativas de aplicação de coimas com o mesmo sentido e alcance com que vale, por força do n.º2 do artigo 32.º da Constituição, para as sentenças judiciais de condenação proferidas em processo criminal.”

O – “(N)ão é possível sustentar que as razões que impedem a aplicação das penas criminais antes do trânsito em julgado da condenação, assentes no reconhecimento da intensidade e expressividade com que interferem na esfera pessoal do arguido, sejam inteiramente transponíveis para o domínio contraordenacional, garantindo assim a aplicação da coima antes do trânsito em julgado da decisão judicial que julgue a impugnação interposta da decisão que a aplica.”

P – Não se verifica, por esta razão, qualquer violação do princípio da presunção de inocência com a aplicação do disposto no n.º 5 do artigo 67.º dos Estatutos da ERS.

Q – Por fim, o n.º 5 do artigo 67.º dos Estatutos da ERS em nada interfere com os direitos de audiência e defesa do arguido no processo contraordenacional, até porque o seu campo de aplicação apenas ocorre numa fase em que a fase administrativa do processo contraordenacional já terminou e se inicia a fase judicial do mesmo.

Termos em que, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá o presente recurso ser julgado procedente e revogada a decisão de declaração de inconstitucionalidade do n.º 5 do artigo 67.º, dos Estatutos da ERS, aprovados pelo Decreto-lei n.º 126/2014, de 22 agosto».

 

  1. 4. Devidamente notificada, a Recorrida não contra-alegou.

Cumpre apreciar e decidir.

 

 

II – Fundamentação

  1. Objeto do recurso
  2. O presente recurso, fundado no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, destina-se à apreciação da decisão recorrida no segmento decisório que recusa a aplicação do artigo 67.º, n.º 5, dos Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto), julgando-o inconstitucional, por preterição dos artigos 2.º, 16.º, 17.º, 18.º, 20.º, n.º 5 e 32.º, n.ºs 2 e 10, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).

O citado preceito dispõe o seguinte:

 

Artigo 67.º
Controlo pelo tribunal competente

1 – Cabe recurso das decisões proferidas pela ERS cuja irrecorribilidade não estiver expressamente prevista no presente decreto-lei.

 2 – A ERS tem legitimidade para recorrer autonomamente de quaisquer sentenças e despachos que não sejam de mero expediente, incluindo os que versem sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais, ou sobre a aplicação de medidas cautelares.

 3 – O Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão conhece com plena jurisdição dos recursos interpostos das decisões em que tenha sido fixada pela ERS uma coima ou uma sanção acessória, podendo reduzir ou aumentar a coima ou alterar a sanção acessória.

4 – As decisões da ERS que apliquem sanções mencionam o disposto na parte final do número anterior.

5 – O recurso tem efeito meramente devolutivo, podendo o recorrente, no caso de decisões que apliquem coimas ou outras sanções previstas na lei, requerer, ao interpor o recurso, que o mesmo tenha efeito suspensivo quando a execução da decisão lhe cause prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução em substituição, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação de caução no prazo fixado pelo tribunal. 

 6 – Interposto recurso da decisão final condenatória, a ERS remete os autos ao Ministério Público, no prazo de 30 dias úteis, não prorrogável, podendo juntar alegações e outros elementos ou informações que considere relevantes para a decisão da causa, bem como oferecer meios de prova, sem prejuízo do disposto no artigo 70.º do regime geral do ilícito de mera ordenação social.

7 – A ERS, o Ministério Público ou o arguido podem opor-se a que o tribunal decida por despacho, sem audiência de julgamento.

8- A desistência da acusação pelo Ministério Público depende da concordância da ERS.
9 – O tribunal notifica a ERS da sentença, bem como de todos os despachos que não sejam de mero expediente.

10 – Se houver lugar a audiência de julgamento, o tribunal decide com base na prova realizada na audiência.

11 – A atividade da ERS de natureza administrativa fica sujeita à jurisdição administrativa, nos termos da respetiva legislação.

  1. Conforme consta do preâmbulo do diploma citado, a aprovação dos Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde emerge da concatenação de dois diplomas distintos, por um lado, do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de maio (entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto), queprocedeu à reestruturação da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), definindo as suas atribuições, organização e funcionamento e, por outro lado, da Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto, que aprovou a lei-quadro das entidades reguladoras, impondo a necessidade, em conformidade com o disposto no artigo 3.º, alínea i), de aprovar e publicar os respetivos estatutos.

Em consequência, o Governo, ao abrigo do disposto no artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da CRP (que prevê a competência legislativa do Governo em matéria não reservada da Assembleia da República), aprovou os referidos Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde.

Estabelece o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 126/14 que a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) é uma pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, de autonomia de gestão, de independência orgânica, funcional e técnica, e de património próprio, gozando de poderes de regulação, de supervisão e de fiscalização, bem como de poderes sancionatórios.

A ERS é, assim, uma entidade administrativa independente, nos termos do artigo 267.º, n.º 3, da CRP, e atua no quadro das incumbências prioritárias do Estado de garantir o acesso de todos os cidadãos aos cuidados de saúde (artigo 64.º, n.º 3 da CRP), visando tutelar, no setor, os direitos dos utentes, bem como a transparência e a concorrência do mercado (artigos 81.º, alíneas f) e i) e 99.º, alíneas a) e e), da CRP).

A criação da ERS surgiu no contexto da liberalização do mercado da saúde, como reflexo da necessidade de enquadramento da participação e atuação das empresas público-privadas, e de regulação, supervisão e fiscalização das entidades do setor privado, social e cooperativo, dado estar em causa uma área vital para a sociedade e para os direitos dos utentes.

 A regulação tem uma lógica específica, que deve ser separada tanto quanto possível da lógica política, tornando-se necessário estabelecer adequada distância entre a política e o mercado, de modo a conferir-lhe estabilidade, previsibilidade, imparcialidade e objetividade. Por outro lado, a abertura à concorrência de setores de atividade, que antes se encontravam sujeitos à influência estatal, trouxe consigo a necessidade de separar a regulação do funcionamento do mercado e a intervenção das entidades públicas enquanto sujeitos económicos (Acórdão n.º 376/2016).

Para a realização da sua missão, foram-lhe acometidas as seguintes atribuições pelo artigo 5.º do referido Estatuto: a regulação da atividade dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde; a supervisão da atividade e funcionamento dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde no que respeita ao cumprimento dos requisitos de exercício da atividade e de funcionamento, incluindo o licenciamento dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde; a garantia dos direitos relativos ao acesso aos cuidados de saúde, à prestação de cuidados de saúde de qualidade, e dos demais direitos dos utentes; a legalidade e transparência das relações económicas entre os diversos operadores, entidades financiadoras e utentes.

O Governo consignou, no capítulo VI do Diploma aqui em causa, um regime atinente a infrações e sanções, que se inicia no artigo 61.º (com a definição das contraordenações) e culmina no artigo 67.º, que consagra o regime da impugnação judicial das contraordenações aplicadas, conferindo ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão plena jurisdição das decisões em que tenha sido fixada pela ERS uma coima ou uma sanção acessória, podendo reduzir ou aumentar a coima ou alterar a sanção acessória (n.º 3) e atribuindo ao recurso efeito meramente devolutivo, nos termos do n.º 5 do citado preceito.

Nestes preceitos, mostra-se inscrito um regime particular contraordenacional em matéria de saúde, o qual, além da definição das contraordenações, prevê ainda sanções acessórias, o modo de determinação do quantum das coimas, o regime de prescrição das mesmas, a publicidade das sanções e, finalmente, o controlo pelo Tribunal competente do modo de aplicação de tais contraordenações.

Ainda com relevo para a natureza destas sanções, determina expressamente a alínea b), do artigo 24.º do diploma em análise que os procedimentos sancionatórios respeitam o princípio da audiência e defesa dos infratores, o princípio do contraditório e demais princípios constantes da lei, designadamente do regime geral do ilícito de mera ordenação social. Trata-se, portanto, de uma remissão para o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que consagrou o regime geral das contraordenações e coimas.

A norma consagrada no artigo 67.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 126/2014 não tem paralelo na legislação que a antecedeu. O Decreto-Lei n.º 309/2003, de 10 de dezembro estipulava, no seu artigo 49.º, n.º 1, que «Das decisões proferidas pela ERS que determinem a aplicação de coimas ou de outras sanções previstas cabe recurso para os tribunais judiciais, nos termos da lei», e, no seu n.º 2, «Das demais decisões, despachos ou outras medidas adoptadas pela ERS cabe recurso para os tribunais judiciais, com efeito meramente devolutivo, nos termos e limites fixados no n.º 2 do artigo 55.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro». O Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de maio, que veio substituir o de 2003, não fixava o efeito do recurso para os tribunais, limitando-se a consagrar no artigo 58.º, n.º 2, que as decisões de aplicação de coimas ou sanções são judicialmente impugnáveis, nos termos da lei.

  1. O regime jurídico posto em crise estabelece a regra do efeito meramente devolutivo da impugnação judicial da decisão da ERS que aplique uma coima ou outra sanção, em processo contraordenacional, admitindo o efeito suspensivo, apenas mediante o duplo requisito de alegação e prova da existência de um prejuízo considerável e da prestação de caução em substituição da coima em que o impugnante foi condenado.

Este regime jurídico representa um desvio à regra consagrada no regime geral das contraordenações que é, por remissão para o Código de Processo Penal (CPP), o do efeito suspensivo da impugnação (artigo 408.º, n.º 1, alínea a), do CPP, ex vi artigo 41.º, n.º 2, do RGCO, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro).

Idêntica regra vigora em relação aos recursos interpostos das decisões que aplicam coimas e outras sanções proferidas, em processo contraordenacional, pela Autoridade da Concorrência (artigo 84.º, n.ºs 4 e 5 da Lei da Concorrência) e pelo Banco de Portugal, entidade independente com poderes de supervisão e sancionatórios, no âmbito do setor bancário e do Sistema Europeu de Bancos Centrais (cf. em especial, artigos 102.º da CRP, 127.º, 129.º. e 130.º do TFUE, 1.º, 3.º, n.º 3 e 7.º do Protocolo relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE e 17.º dos Estatutos do BP). Também na impugnação judicial interposta das decisões administrativas de aplicação de coimas no domínio das contraordenações laborais e de segurança social apenas é admitido o efeito suspensivo mediante a prestação de garantia (artigo 35.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro), o que também ocorre em matéria de infrações tributárias, ainda que neste caso a garantia seja dispensada quando o interessado demonstre a insuficiência de meios económicos (artigo 84.º do RGIT).

O legislador, na modelação do regime de impugnação das decisões sancionatórias proferidas por tais entidades administrativas, ponderou a necessidade de conferir maior eficácia aos respetivos poderes sancionatórios, de modo a garantir, no plano substantivo, uma maior proteção aos valores e bens tutelados nos específicos domínios normativos em que atuam. Atribuindo, em regra, efeito devolutivo ao recurso, e condicionando o efeito suspensivo à prestação de caução e à existência de «prejuízo considerável», procura-se minimizar os recursos judiciais infundados cujo objetivo seja protelar no tempo o pagamento da coima.

 

  1. Na perspetiva do tribunal recorrido, o regime consagrado no artigo 67.º, n.º 5, do Estatuto da ERS (Decreto-Lei n.º 126/2014), consagrando a execução antecipada da sanção (ou a prestação de caução em substituição da coima e de valor equivalente a esta), decidida por entidade administrativa antes de o caso ter sido conhecido por um tribunal, significa uma presunção de abuso do direito ao recurso ou de culpabilidade contra os cidadãos condenados ao pagamento de coima ou outras sanções acessórias, apenas baseada num receio geral e não provado de incumprimento. A norma posta em crise, segundo o acórdão recorrido, restringe, de forma desnecessária e excessiva, o direito de acesso ao tribunal, o direito à tutela efetiva e a um processo equitativo, consagrados, no artigo 20.º, n.ºs, 1, 4 e 5, da CRP, bem como o princípio da presunção de inocência, que o tribunal recorrido considera aplicável aos processos contraordenacionais, por força do artigo 32.º, n.º 10, da CRP, e que analisa na sua dupla dimensão de proibição da antecipação das penas a título de medidas cautelares e de proibição de efeitos automáticos da instauração de procedimento criminal.

Prossegue o tribunal recorrido, entendendo que o legislador, no artigo 67.º, n.º 5, do Estatuto da ERS, optou por uma solução extremada no estabelecimento de limites ao acesso aos tribunais, ofendendo as exigências de legitimidade e de proporcionalidade ínsitas à margem de livre apreciação disponível.

Em consequência, conclui que a norma não passa o teste da necessidade, porque o Estado tinha ao seu dispor outras soluções para a realização das finalidades cautelares visadas, designadamente a caução económica prevista no artigo 277.º do CPP, preceito que assenta num fundado receio, casuisticamente aferido, de perda da garantia patrimonial, nem o teste da proporcionalidade em sentido estrito, por se tratar de uma medida de grau máximo que faz corresponder o efeito suspensivo ao pagamento de uma coima de valor equivalente ao da sanção aplicada, sem atribuir ao julgador margem de conformação.

     Foi esta a forma como a decisão recorrida colocou a questão:

«A atribuição de efeito devolutivo como regra ou a atribuição de efeito suspensivo mediante o cumprimento de ónus de alegação e/ou prova ao visado da decisão sancionatória satisfaz finalidades cautelares de antecipação sancionatória e, por outro lado, representa uma medida de grau máximo no sentido em que faz corresponder o efeito suspensivo ao pagamento da coima ou prestação de caução equivalente à coima.

(…)

O legislador do art. 67.º, n.º 5 dos E.E.R.S. optou pela solução mais extremada no estabelecimento do limite do acesso, ferindo, em toda a linha, as exigências da admissibilidade, legitimidade e proporcionalidade ínsitas à margem de livre apreciação disponível.

(…)

«A ratio constitucional conforme do art.º 67.º, n.º 5 dos E.E.R.S., atentas as exigências do art.º 20.º, n.º 1 e 5 e da jurisdição plena, poderia e deve ser melhor alcançada com a eventual consagração de ónus que não impliquem a antecipação da sanção».

 

  1. O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a conformidade à Constituição de normas semelhantes à agora questionada, que fixam os efeitos do recurso de decisões de entidade reguladoras que aplicam coimas, nomeadamente, a norma que determina os efeitos da impugnação de decisões da Autoridade da Concorrência (“AdC”), nos termos do artigo 84.º, n.ºs 4 e 5, da Lei da Concorrência (Acórdãos n.ºs 376/2016 e 674/2016) e a norma que define os efeitos da impugnação de decisões da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (“ERSE”) – artigo 46.º, n.ºs 4 e 5 do regime sancionatório do setor energético (“RSSE”). A constitucionalidade desta norma foi apreciada por este Tribunal, nos Acórdãos n.º 675/2016 e n.º 397/2017, tendo o primeiro Acórdão proferido, com dois votos de vencido, um juízo de inconstitucionalidade material da norma, enquanto o segundo proferiu, também com dois votos de vencido, um juízo de não inconstitucionalidade.

No Acórdão n.º 376/2016, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional «a norma extraída do artigo 84.º, nºs 4 e 5, da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, segundo a qual a impugnação interposta de decisões da Autoridade da Concorrência que apliquem coimas tem, em regra, efeito devolutivo, apenas lhe podendo ser atribuído efeito suspensivo quando a execução da decisão cause ao visado prejuízo considerável e este preste caução, em sua substituição, no prazo fixado pelo tribunal», tendo excluído expressamente do objeto do recurso a dimensão normativa atinente à impossibilidade de graduação do valor da caução e à circunstância de a prestação de caução operar sem que esteja acautelada a potencial situação de insuficiência de bens económicos do arguido.

O citado Acórdão fundamentou a sua decisão no entendimento de que a solução consagrada na lei em relação à regra do efeito devolutivo do recurso, apesar de restringir o direito à tutela efetiva e à presunção de inocência, ainda respeita o princípio da proporcionalidade, dada a relevância dos interesses públicos em causa e o diferente alcance do princípio da presunção de inocência no processo contraordenacional e no processo penal:

«Considerando a natureza de «interesse público ou coletivo» dos bens jurídicos que o Direito da Concorrência pretende salvaguardar, com relevo constitucional e no quadro da UE (artigos 81.º, alínea f), 99.º, n.º 1, alíneas a) e c), da Constituição, e artigos 3.º, n.º 3 do TFUE, não se afigura injustificado ou desrazoável a adoção, como regra geral, do efeito devolutivo da impugnação interposta das decisões da Autoridade da Concorrência que apliquem coimas. É uma medida normativa que garante maior eficácia às decisões sancionatórias, dissuadindo comportamentos processuais que, por infundados e dilatórios, comprometem a defesa efetiva desses valores (cfr., a propósito, Lopes do Rego, «Aspetos constitucionais da política da concorrência em Portugal, em Revista do Ministério Público, Ano 29, janeiro-março 2008, número 113, págs. 8-9).

Por outro lado, importa sublinhar que a Autoridade da Concorrência, enquanto entidade administrativa a quem compete a prossecução do interesse público de prevenção e repressão da violação desses bens jurídicos, está subordinada, no exercício das suas funções, por expressa previsão constitucional, aos princípios fundamentais que regem toda Administração Pública, assumindo particular relevo, no domínio sancionatório, a sujeição aos princípios da legalidade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade (artigo 266.º, n.º 2, da Constituição). Está em causa a aplicação de sanções (coimas), cujos critérios de determinação estão legalmente previstos (artigo 69.º da Lei da Concorrência), pela prática de infrações tipificadas por lei (artigo 68.º), e após a instauração de um processo administrativo cujos termos legais genericamente asseguram ao arguido o seu direito de audiência e defesa (cfr. artigos 7.º, nºs. 1 e 2, 25.º, 26.º, 33.º, n.º 1, e 59.º do mesmo diploma legal).

(…)

Finalmente, admitindo-se que o princípio da presunção de inocência não é uma conquista privativa do processo criminal, devendo estruturar todos os processos que possam culminar com a aplicação de sanções disciplinares ou contraordenacionais, com implicações diretas ao nível do ónus da prova e do princípio in dubio pro reo, não se afigura que ele possa valer para as decisões administrativas de aplicação de coimas com o mesmo sentido e alcance com que vale, por força do n.º 2 do artigo 32º da Constituição, para as sentenças judiciais de condenação proferidas em processo criminal».

Por sua vez, o Acórdão n.º 674/2016 julgou inconstitucional «a norma que estabelece que a impugnação judicial de decisões da Autoridade da Concorrência que apliquem coima tem, em regra, efeito devolutivo, apenas lhe podendo ser atribuído efeito suspensivo quando a execução da decisão cause ao visado prejuízo considerável e este preste caução, em sua substituição, no prazo fixado pelo tribunal, independentemente da sua disponibilidade económica, interpretativamente extraível dos n.ºs 4 e 5 do artigo 84.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio».

E fê-lo, por entender que a interpretação normativa extraída do artigo 84.º, n.ºs 4 e 5, da Lei da Concorrência, violava o princípio da proporcionalidade nas suas dimensões da necessidade e da justa medida:

«21. Por outro lado, o condicionamento do efeito suspensivo do recurso à efetiva prestação de caução no prazo fixado pelo tribunal – cfr. artigo 84.º, n.º 3 – inculca uma ideia de automatismo que, pode não deixar espaço para um juízo de dispensa ou adequação (designadamente do montante e modo de prestação) atentos os circunstancialismos do caso concreto. Como já foi afirmado “(…) a redação da lei não parece deixar margem de manobra para que o juiz dispense a prestação de caução, uma vez que exige que a mesma seja efetiva” (Teresa de Lima Mayer Alves Moreira, “A Desnecessidade da Exequibilidade Imediata da Coima no Novo Regime Jurídico da Concorrência à Luz do Princípio da Presunção de Inocência e do Direito de Acesso aos Tribunais”, inédito, p. 42).

De acordo com a dimensão normativa dos n.ºs 4 e 5, do artigo 84.º da LdC, cuja aplicação foi recusada, por inconstitucionalidade, pelo tribunal a quo, a atribuição do efeito suspensivo depende da prestação de uma caução cuja fixação não é atribuída a apreciação judicial. A prestação da caução a que alude a parte final do n.º 5, do artigo 84.º representa uma condição ope legis, desde que se encontre demonstrado o prejuízo considerável resultante da execução da coima. O juiz é chamado a verificar se a execução da coima causa o prejuízo considerável ao recorrente por este invocado no requerimento de interposição do recurso, mas, demonstrado este prejuízo, a decisão judicial restringe-se à fixação de um prazo para a prestação de caução, “em substituição” do montante da coima, o que inculca a ideia de necessária correspondência entre os dois montantes.

Ora, uma tal automaticidade não consente a devida ponderação circunstanciada do caso, designadamente para efeitos de avaliação da exigibilidade da prestação de uma caução de montante igual ao da coima para prevenção de eventuais perigos que se imponha acautelar e que podem encontrar mecanismo alternativo nas medidas provisórias. É, todavia, possível configurar uma solução legislativa alternativa em que a prestação de caução não esteja ligada ao referido automatismo, permitindo a ponderação pelo juiz do seu valor.

Acrescente-se, aliás, que o processo contraordenacional não exclui a possibilidade de aplicação de algumas medidas cautelares que visam assegurar os fins do processo. No caso da LdC, o artigo 34.º dispõe expressamente que «sempre que as investigações realizadas indiciem que a prática que é objeto do processo está na iminência de provocar prejuízo, grave e irreparável ou de difícil reparação para a concorrência, pode a Autoridade da Concorrência, em qualquer momento do processo, ordenar previamente a imediata suspensão da prática restritiva ou quaisquer outras medidas provisórias necessárias à imediata reposição da concorrência ou indispensáveis ao efeito útil da decisão a proferir no termo do processo» (sublinhado nosso). Trata-se de um outro mecanismo alternativo ao previsto na norma em julgamento.

Assim se vê que existem opções normativas menos lesivas do direito de acesso ao tribunal, que respeitando a presunção de inocência do arguido, não representam perda de eficácia na prossecução do fim de interesse público prosseguido.

(…)

  1. Mesmo que se tivesse concluído de outro modo no que respeita ao teste da necessidade, ainda assim a norma mereceria censura constitucional por violar o teste da justa medida.

O princípio da proporcionalidade em sentido estrito veda a adoção de medidas que se apresentem como excessivas (desproporcionadas) para atingir os fins visados. É o caso da solução normativa sob juízo.

Na verdade, ao traduzir a imposição de um ónus de efeitos equivalentes ao cumprimento da coima para evitar a antecipação daquele mesmo cumprimento a norma recusada afronta o princípio da proporcionalidade, por se apresentar como medida excessiva diante dos fins prosseguidos.

Ainda que, de acordo com a jurisprudência constitucional, seja de aceitar uma maior amplitude do poder de conformação do legislador democrático quando versa sobre o direito contraordenacional por comparação com a margem de discricionariedade deixada ao legislador penal, designadamente em sede de definição das garantias de defesa do arguido (cfr. por todos Acórdão n.º 297/2016, ponto 14), a norma em análise, onerando excessivamente o direito de acesso a uma tutela judicial efetiva, praticamente esvazia de sentido a presunção de inocência atribuída ao arguido, o que constitui compressão excessiva das garantias de defesa previstas no artigo 32.º, n.ºs 2 e 10, em articulação com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição.

E esta conclusão não é infirmada pela circunstância de a caução poder vir a ser devolvida por efeito da decisão final, pois que a desproporção na medida ali prevista não sofre qualquer alteração na sua essencialidade por força desta possível reparação.

  1. Por último – cumpre notar ainda – a norma recusada não acautela a possibilidade de verificação de insuficiência económica do arguido/recorrente. Numa análise de ponderação custos-benefícios, esta desconsideração total da situação económica do visado onera desproporcionadamente o sacrifício infligido no direito fundamental do acesso à justiça individual para atingir o benefício de interesse público prosseguido. Impondo a prestação de uma garantia de valor equivalente ao montante da coima mesmo aos arguidos que não tenham meios para a prestar, a solução normativa em causa exacerba o potencial inibidor da opção pela via de recurso de forma intolerável, já que redunda numa solução que esvazia uma das dimensões essenciais do direito de acesso à via judicial de plena jurisdição. Na prática, propicia-se a imediata execução da coima por falta de meios económicos do visado para impugnar a decisão da AdC de forma apta a prevenir o seu imediato pagamento».

  1.  Como resulta do Acórdão n.º 281/2016, proferido em Plenário, os diferentes juízos quanto à constitucionalidade emitidos por estes dois Acórdãos resultaram da formulação de interpretações normativas distintas.

O Acórdão n.º 376/2016, que julgou não inconstitucional a norma extraída do artigo 84.º, n.ºs 4 e 5, da lei 19/2012, de 8 de maio, excluiu expressamente do sentido normativo apreciado a situação decorrente da incapacidade financeira do impugnante («por não ser essa a situação do caso e uma tal interpretação normativa não ter constituído radio decidendi, mas um mero obiter dictum»), tendo este Tribunal, no citado Acórdão, deduzido a concreta configuração da dimensão normativa a fiscalizar da circunstância de a empresa impugnante não ter invocado quaisquer factos que permitissem sustentar a impossibilidade económica de prestação de caução.

O Acórdão n.º 376/2016 incluiu no sentido da norma questionada a possibilidade de o tribunal fixar caução «pela forma e montante julgados adequados ao caso concreto», o que entendeu constituir uma «válvula de escape» que retira rigidez e automaticidade ao sistema. Já o Acórdão n.º 674/2016 integrou na norma que julgou inconstitucional os aspetos que foram afastados pelo Acórdão n.º 376/2016: a impossibilidade de graduação da caução e a desconsideração da indisponibilidade financeira do impugnante.

No sentido adotado pelo Acórdão n.º 376/2016, o recente Acórdão n.º 397/2017, proferido nesta Secção, e que decidiu não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 46.º, n.ºs 4 e 5, da Lei n.º 9/2013, de 28 de janeiro, baseou-se numa interpretação normativa que exclui, tal como o Acórdão n.º 376/2017, o sentido, segundo o qual se verifica uma equivalência automática e necessária entre o valor da caução a prestar e o montante da coima, expressamente admitindo «que a prestação da caução seja feita no montante e pela forma que o Tribunal entender adequados, tomadas em devida consideração as particularidades do caso, as circunstâncias do impugnante e a função de garantia da caução».

B – O mérito do recurso

  1. A questão da conformidade da norma com a Lei Fundamental encontra-se intimamente conexionada com a natureza dogmática do direito contraordenacional, na medida em que a compreensão desta influi, de modo determinante, no processo hermenêutico de convocação dos preceitos e princípios constitucionais que ao caso hão-de ser aplicados.

Ora, como é sabido, o direito das contraordenações surgiu na Alemanha do pós-guerra, na sequência do labor da designada Comissão do Direito Penal Económico, que culminou na aprovação da Lei da Simplificação do Direito Penal Económico, datada de 26 de julho de 1949, cuja entrada em vigor foi deferida para 1 de outubro desse mesmo ano.

No cerne do diploma – produzido num contexto histórico particular de reação contra o uso indiscriminado das penas criminais – estava subjacente o desiderato de criação do conceito de contraordenação como infração distinta da infração criminal à qual seria aplicada uma sanção própria, também ela distinta da pena criminal, conformada por regras adjetivas próprias, parcialmente a cargo da Administração.

Seguiu-se um intenso debate doutrinário e jurisprudencial que, equacionando e debatendo a distinção entre as noções de crime e de contraordenação, redundou na aprovação, em 1952, de uma lei-quadro do direito contraordenacional futuro (OWIG), que previa o alargamento do direito das contraordenações a outras matérias que não unicamente económicas, o que veio, efetivamente, a materializar-se, no ano de 1968, com a aprovação de uma nova lei-quadro (EGOWIG) que previa a conversão das contravenções rodoviárias em contraordenações.

No plano do direito português, data de 1979 a aprovação do regime geral das contraordenações (Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de julho), diploma que continha um regime idêntico à lei-quadro alemã de 1968, acolhendo expressamente a noção de contraordenação como todo o facto ilícito e subjetivamente censurável que preenchesse um tipo legal no qual se cominasse uma coima.

A circunstância de, por um lado, à data, o texto da Lei Fundamental ser omisso em matéria contraordenacional e, por outro lado, terem surgido dúvidas sobre a competência material do Governo para a aprovação daquele diploma, despoletou uma pluralidade de incertezas sobre a validade do regime legal então instituído, parcialmente superadas com a aprovação – na sequência de autorização legislativa da Assembleia da República, concedida pela Lei n.º 24/82, de 23 de agosto – do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que revogou o diploma de 1979 e se mantém presentemente em vigor, ainda que objeto de sucessivas alterações legislativas parcelares, invariavelmente precedidas de autorização da Assembleia da República (v.g. Lei n.º 4/89, de 3 de março, Lei n.º 13/95, de 5 de maio, Lei n.º 109/2001, de 24 de dezembro).

Com a aprovação do referido diploma, o legislador propunha-se regular amplos espaços da vida social e económica, designadamente «as práticas restritivas da concorrência, as infracções contra a economia nacional e o ambiente, bem como a protecção dos consumidores». Donde, o ilícito de contraordenação social demanda o reconhecimento do postulado de que ao lado do direito penal existe um novo e autónomo direito sancionatório, o direito de mera ordenação social.

No artigo 1.º do Regime Geral, acolheu-se, com o aplauso da doutrina, um conceito formal de contraordenação: constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima (cf. Figueiredo Dias, «O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social», in Jornadas de Direito Criminal: o Novo Código Penal Português e Legislação complementar”, Centro de Estudos Judiciários,1983, pp. 316-317).

Entretanto, a Lei Constitucional n.º 1/89 aditou ao artigo 32.º da CRP – norma que integra a constituição processual criminal – a disposição contida no n.º 10, no qual se consignou que, nos processos de contraordenação, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.

Apesar do laconismo de tal inovação é significativo que essa referência tenha sido incluída, em termos sistemáticos, nas normas relativas à garantia dos arguidos em processo criminal e não no título IX da Constituição, respeitante à Administração Pública (cf. o artigo 268.º que trata dos direitos e garantias dos administrados). No plano hermenêutico, por outro lado, o enquadramento constitucional do direito de defesa forneceu mais um elemento para a compreensão do regime do ilícito de mera ordenação social, em especial na fase organicamente administrativa do processo de contraordenação.

É certo que o direito das contraordenações, enquanto direito sancionatório público, foi concebido com autonomia substantiva, sancionatória e processual, em relação ao Direito Penal e que o Tribunal Constitucional (Acórdãos n.º 469/97 e n.º 278/99, entre outros) tem afirmado que, no domínio do processo contraordenacional, não existe uma estreita equiparação entre ilícito contraordenacional e o ilícito criminal, sublinhando, no entanto, a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contraordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matérias de processo penal.

Com efeito, este Tribunal vem sustentando que crime e contraordenação não são infrações substancialmente equivalentes, quer na perspetiva dos bens tutelados, quer na perspetiva das reações sancionatórias que a sua prática determina: no primeiro caso, está em causa a «ofensa de bens e valores tidos como estruturantes da sociedade», que desencadeia, pela sua gravidade, «um complexo processo com vista a determinar o seu autor e a responsabilizá-lo criminalmente com penas (…) que podem implicar, no limite, a privação da liberdade do arguido; nada disso se passa com as contraordenações que, sendo ilícitos, não comprometem os alicerces em que assenta a convivência humana e social, e, dando lugar à aplicação de coimas, não se dirige, através delas, qualquer juízo de censura ético-jurídica à pessoa do agente mas uma simples advertência de alcance comportamental, cuja garantia é apenas e só de ordem patrimonial» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 612/2014).

  1. Tendo sido questionada pelo tribunal recorrido a constitucionalidade material da norma, deve dizer-se que, independentemente do juízo a proferir nesta sede e da concreta configuração da interpretação normativa abrangida por esse juízo, a norma agora em crise, por integrar um Decreto-Lei do Governo não autorizado pela Assembleia da República, apresenta um outro vício – a inconstitucionalidade orgânica por violação das regras de competência dos órgãos de soberania.

Dispõe o artigo 79.º-C da LTC, sob a epígrafe «Poderes de cognição do Tribunal», que o Tribunal só pode julgar inconstitucional ou ilegal a norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação, mas pode fazê-lo com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos dos invocados.

Ao abrigo da parte final deste preceito, vem este Tribunal perfilhando jurisprudência no sentido de que os seus poderes cognitivos não se encontram limitados pela qualificação jurídica do vício imputado à norma, nem pelo concreto fundamento jurídico-constitucional invocado, nenhum óbice existindo à apreciação da norma questionada em função de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles que foram invocados (cf. Acórdãos n.º 33/96 e 664/97).

Por conseguinte, nenhum entrave existe à apreciação de uma inconstitucionalidade orgânica, ainda que não invocada.

Vejamos, pois.

12.1 A norma em causa, na parte em que consagra o princípio do efeito devolutivo da impugnação judicial e condiciona a obtenção de efeito suspensivo do recurso à prestação de caução e verificação de um prejuízo considerável para o arguido, constitui uma lei restritiva de direitos, liberdades e garantias, nomeadamente, do princípio da presunção de inocência estatuído no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.

O princípio da presunção de inocência impõe os seguintes corolários: proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido; preferência pela sentença de absolvição contra o arquivamento do processo; exclusão da fixação da culpa em despachos de arquivamento; não incidência de custas sobre arguido não condenado; proibição de antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares; proibição de efeitos automáticos da instauração do procedimento criminal; natureza excecional e de última instância das medidas de coação, sobretudo as limitativas ou proibitivas da liberdade; princípio in dubio pro reu (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Volume I, Coimbra, 2007, p. 518).

 A jurisprudência europeia e a do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos têm procedido à aplicação do princípio da presunção de inocência em sede contraordenacional, tendo em conta as finalidades punitivas e dissuasoras das sanções impostas (cf. TEDH, acórdãos Öztürk c. Alemanha e Lutz c. Alemanha; acórdãos do Tribunal de Justiça, de 8 de julho de 1999, Hüls/Comissão, C-199/92 P, Colect., p. I-4287, n.ºs 149 e 150, e Montecatini/-Comissão, C – 235/92 P, Colect., p. I-4539, n.ºs 175 e 176).

No aresto do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia, no âmbito do processo n.º T-279/02, que opunha Degussa à Comissão, decidiu-se, em 05.04.2006 (disponível in https://e-justice.europa.eu/content_eu_case_law-12-pt.do), que o princípio da presunção de inocência, tal como resulta do artigo 6.º, n.º 2, da CEDH, faz parte dos direitos fundamentais que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça (reafirmada no preâmbulo do Ato Único Europeu e no artigo 6.º, n.º 2, do Tratado da União Europeia, bem como no artigo 47.º da Carta), são reconhecidos na ordem jurídica comunitária.

O princípio da presunção de inocência encontra-se, assim, entre aqueles que têm aplicação em matéria contraordenacional.

Como afirmou o Tribunal no Acórdão n.º 674/2016 «O princípio da presunção de inocência pertence àquela classe de princípios materiais do processo penal que, enquanto constitutivos do Estado de direito democrático, são extensíveis ao direito sancionatório público. Sendo expressão do direito individual das garantias de defesa e de audiência, este princípio encontra, pois, aplicação também no processo contraordenacional, como decorre dos n.ºs 2 e 10 do artigo 32.º da Constituição».

Consequentemente, estando em causa a preterição de um direito, liberdade e garantia, através de uma norma que integra um Decreto-Lei do Governo não autorizado, verifica-se a violação da reserva legislativa da Assembleia da República prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP.

  1. Destarte, o artigo 67.º, n.º 5, do Estatuto da ERS, aprovado pelo Decreto-Lei, n.º 126/2014, de 22 de agosto, é inconstitucional por violação do princípio da competência reservada da Assembleia da República constante da alínea b), do n.º 1, do artigo 165.º da Constituição.

III – Decisão

  1. Em face do exposto, decide-se:
  2. a) Julgar inconstitucional o n.º 5 do artigo 67.º do Estatuto da Entidade Reguladora da Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto, por violação da alínea b) do n.º 1, do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa.

e, em consequência,

  1. b) Não conceder provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida, ainda que com fundamentação diversa, nos termos constantes na parte final do artigo 79.º-C da LTC.

Sem custas judiciais, por não serem legalmente devidas.

Lisboa, 15 de novembro de 2017 – Maria Clara Sottomayor (de acordo com declaração de voto anexa) – Gonçalo Almeida Ribeiro – Joana Fernandes Costa – Maria José Rangel de Mesquita (vencida nos termos da declaração anexa) – João Pedro Caupers(vencido pelas razões constante da declaração de voto da Cons. Maria José Rangel de Mesquita)

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

  1. Porque a questão colocada pelo acórdão recorrido se situa no domínio da inconstitucionalidade material e porque esta se reporta à restrição desproporcionada de direitos fundamentais dos cidadãos – tutela judicial efetiva e direito de acesso à justiça, bem como presunção de inocência – consubstanciando a inconstitucionalidade material um vício mais grave do que o da inconstitucionalidade orgânica, não teria conhecido apenas desta, mas também da constitucionalidade material. E tal juízo não seria inútil. É que a inconstitucionalidade orgânica, referindo-se a uma questão de repartição de competências entre Governo e Assembleia da República, invalida a totalidade do preceito legal, invalidade que pode ser sanada por uma posterior lei de autorização. Contudo, a função do Tribunal Constitucional, mais do que fiscalizar a observância das regras de competência dos órgãos de soberania, consiste na proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos através de juízos de inconstitucionalidade sobre normas ou interpretações normativas que violem normas ou princípios constitucionais, dos quais se deduzam direitos fundamentais. Importa, portanto, informar os operadores judiciários, e indiretamente o legislador, de dimensões normativas que não podem ser aceites por não serem conformes com a lei fundamental. Reportando-se, neste caso, o juízo de inconstitucionalidade material a uma interpretação normativa determinada, conforme decorre do acórdão recorrido, o seu âmbito não abrange a totalidade da norma mas apenas uma dimensão ou segmento normativo, sobre o qual importa elucidar os cidadãos e responder aos tribunais comuns,  que têm recusado, em vários processos semelhantes, a sua aplicação, no exercício dos seus poderes no âmbito do controlo de difuso de constitucionalidade que carateriza o nosso sistema de fiscalização concreta. A utilidade deste juízo é evidente para que os operadores judiciários conheçam as dimensões normativas inconstitucionais e não as apliquem, e para que a Assembleia da República, ao sanar a inconstitucionalidade orgânica, possa também alterar o conteúdo da norma, tornando-a conforme às normas constitucionais que consagram direitos fundamentais.
  2. Afirmada a pertinência e a utilidade de se conhecer também da constitucionalidade material, importa definir qual a interpretação normativa em causa. Esta reside no condicionamento do efeito suspensivo da impugnação judicial à demonstração, pelo recorrente, de que a execução da decisão lhe causa prejuízo considerável e à prestação de caução em substituição da coima aplicada, independentemente da sua situação de carência económica. Esta interpretação normativa decorre do teor literal do preceito e da fundamentação da decisão recorrida, sendo reforçada pela circunstância de, no caso concreto, a impugnante ser uma pessoa singular, que, diferentemente das grandes empresas que operam no mercado da saúde, não tem capacidade financeira para o pagamento da coima (fls. 124 a 136).

A interpretação normativa aqui em causa diz respeito a uma dimensão que implica o automatismo do pagamento de uma caução equivalente ao valor da coima (em sua substituição), como condição do efeito suspensivo do recurso, sem qualquer margem de apreciação judicial na determinação concreta do montante da caução, abrangendo necessariamente a desconsideração pela eventual situação de carência financeira do arguido. Com efeito, resulta direta e necessariamente da forma como o tribunal interpretou a norma, que ela se aplica independentemente de o visado ter ou não condições financeiras para tal. Assim, a fundamentação do tribunal a quo, objeto do presente recurso, passa por um juízo negativo formulado sobre a possibilidade de ponderar a situação económica do recorrente. Para além disso, a impugnante, perante o tribunal a quo, alegou expressamente a sua incapacidade financeira.

  Sendo assim, o valor da aludida caução substitutiva redundará invariavelmente no pagamento antecipado da contraordenação aplicada (ou execução antecipada), emergente da decisão de uma autoridade administrativa não transitada em julgado, proferida num processo de características inquisitórias em que não se verifica uma igualdade de armas entre as partes.

  1. Aratio subjacente ao efeito devolutivo do recurso reside na eficácia da sanção e na finalidade de evitar comportamentos dilatórios ou atuações excessivamente litigantes, ligadas ao facto de nos setores económicos, objeto do poder sancionatório das entidades reguladoras, operarem normalmente empresas de grande dimensão e poder económico.

Contudo, independentemente do que se pense em relação ao regime adequado para as empresas de elevado poder económico, que podem aproveitar-se da sua posição dominante para abusarem do seu poder em relação aos consumidores, sempre serão distintos os casos em que o sujeito condenado seja, como no caso sub judice, uma pessoa singular que invoca a sua insuficiência económica para o pagamento da caução. Constitui exigência irrenunciável do Estado de Direito que a eficiência seja sempre funcionalmente orientada e não ultrapasse os limites postos pelos direitos fundamentais dos cidadãos.

A propósito do princípio da proporcionalidade, ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da Lei Fundamental, importa proceder ao denominado triplo teste que vem sendo considerado na jurisprudência deste Tribunal.

De acordo com tal análise (cf. entre outros, o Acórdão n.º 634/93), verifica-se violação do princípio da proporcionalidade se: a medida em análise for considerada inadequada (isto é, a medida é em si mesma inócua, indiferente ou até negativa face ao fim prosseguido); desnecessária (se existem meios adequados alternativos, menos onerosos, para alcançar o fim prosseguido); ou desproporcionada (o ganho de interesse público inerente ao fim justificado não compensa a carga coativa imposta ao indivíduo ou existe uma relação desequilibrada entre os custos e os benefícios da medida).

A relevância a atribuir a cada um dos subprincípios ou elementos depende dos campos de aplicação, com as inerentes consequências na margem de apreciação do juiz perante o legislador (Jorge Miranda, Direitos Fundamentais, Coimbra, 2017, p. 330), tendo em conta que ao legislador é reconhecido um espaço de conformação na ponderação de bens quando edita uma nova regulação (Acórdãos n.º 484/2000 e n.º 187/2001).

 Estes três subprincípios (adequação, exigibilidade e proporcionalidade em sentido restrito) devem relacionar-se entre si segundo uma regra de precedência do mais abstrato para o mais concreto ou mais próximo, avaliando-se as circunstâncias específicas do caso da vida que se aprecia (Acórdão n.º 632/2008).

O controlo da proporcionalidade demanda que as restrições correspondam à medida exigida pelos fins e que as restrições não ultrapassem as suas justas exigências, limitando-se ao necessário para salvaguardar outros interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, n.º 2, 2.ª parte, da CRP) e contendo-se na estrita medida das exigências destes, isto é, não podem ser utilizadas para além do estritamente necessário (Acórdãos n.º 363/91 e 456/93).

O sentido da proibição do excesso é, como afirma Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, 2003, p. 273), “evitar cargas coativas excessivas ou atos de ingerência desmedidos na esfera jurídica dos particulares”. O princípio da proporcionalidade está, assim, associado ao método da ponderação de bens e por isso convoca o tema da ordem de valores constitucional, ínsita sobretudo nas normas sobre direitos fundamentais. Esta metodologia deve conduzir a uma concordância prática entre os bens ou direitos contrapostos através de concessões recíprocas, ou à cedência de um dos direitos relativamente ao outro direito ou bem constitucional de superior valia.

Neste quadro, deve averiguar-se, em primeiro lugar, da existência de outras medidas no ordenamento jurídico que prossigam finalidades cautelares e que sejam menos onerosas do que a medida restritiva agora apreciada. Ora, a lei tem outros instrumentos para prosseguir fins cautelares e de eficácia, como a norma constante do artigo 227.º do Código de Processo Penal (caução económica, inscrita no capítulo atinente às medidas de garantia patrimonial), a decretar em função da demonstração de um casuístico e concreto receio de perda da garantia patrimonial, cujo ónus de demonstração impende sobre o Ministério Público e não sobre o arguido. Por outro lado, o Decreto-Lei n.º 126/2014 permite a chamada reformatio in pejus, podendo o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, nos termos do artigo 67.º, n.º 3, aumentar a coima, solução que constitui uma forma de desincentivar o exercício abusivo do direito de recurso. E, para fazer face a um «prejuízo grave e irreparável ou de difícil reparação para o setor regulado ou para os utentes de cuidados de saúde», a ERS pode, segundo o artigo 23.º dos seus Estatutos, «ordenar preventivamente a imediata suspensão da prática dos referidos atos ou quaisquer outras medidas provisórias necessárias à imediata reposição do cumprimento das leis ou regulamentos aplicáveis que se mostrem indispensáveis ao efeito útil da decisão a proferir em processo instaurado ou a instaurar».

Sendo assim, a medida adotada pelo legislador para evitar a litigância abusiva – a aplicação de uma caução em substituição da coima e de montante equivalente a esta, independentemente da disponibilidade económica do impugnante – não é, no contexto do caso sub judice, necessária nem exigível para prosseguir os fins cautelares visados pelo legislador.

Ainda que assim não se entenda, sempre a medida, baseada unicamente na celeridade e na eficácia, representa uma carga excessiva para os direitos dos impugnantes ao acesso aos tribunais e à tutela efetiva (artigo 20.º, n.º 1 e n.º 5, da CRP), bem como para o princípio da presunção de inocência (artigo 30.º, n.º 2, da CRP) porque aplicada por uma entidade administrativa, num processo de estrutura inquisitorial, e porque, constituindo este o aspeto decisivo no juízo de ponderação, tendo caráter automático, não permite a graduação da coima nem qualquer consideração pela situação económica dos impugnantes.

     São válidas a este propósito as considerações vertidas nos Acórdãos n.º 674/2016 e 675/2016, segundo as quais o que está em causa nestes processos não é meramente um direito ao recurso ou os efeitos do recurso de uma decisão judicial, mas sim um direito de ação ou de acesso aos tribunais.

Em consequência, a norma cuja aplicação foi recusada pelo acórdão recorrido, o artigo 67.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 126/2014, na interpretação normativa aqui em causa – que inclui a impossibilidade de graduação do valor da caução ou de dispensa desta, em situação de incapacidade financeira do impugnante – viola o princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP e os direitos de acesso à justiça e à tutela efetiva, consagrados no artigo 20.º, n.º 1 e n.º 5, da CRP, em conjugação com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, padecendo, portanto, de inconstitucionalidade material.

  1. Importa ainda referir, a propósito do tema, que estamos perante um diploma legal referido às funções da entidade reguladora da saúde e à tutela de bens jurídicos que se revestem, nalguns tipos contraordenacionais, de dignidade penal; as coimas podem ser de montante muito elevado e os processos em que estas são aplicadas não gozam de estrutura acusatória.

A inclusão no artigo 32.º da CRP de uma menção expressa aos direitos de audiência e defesa do arguido em processo contraordenacional consubstancia um facto que, à luz de uma interpretação sistemática, vem afastar o processo de contraordenação do âmbito administrativo e integrá-lo no âmbito do processo penal. Apontando neste sentido, no plano infraconstitucional, o artigo 41.º, n.º 1, do RGCOC expressamente estatui que o regime subsidiário aplicável é o do processo criminal.

Em consequência, nenhum dos fatores de hermenêutica que se impõem ao julgador, seja o elemento histórico, literal ou sistemático, consentem a conclusão de que é no plano do direito administrativo que se deve procurar respaldo para a compreensão da teleologia da norma aqui questionada, devendo, antes, tal labor interpretativo circunscrever‑se aos domínios do direito penal e processual penal.

O direito contraordenacional é hoje chamado a desempenhar uma função de relevo no âmbito do direito regulador, o que implicou uma gradual transformação substancial da sua natureza.

Os bens jurídico-económicos que na atualidade são valorados como os de maior relevo para a organização e ordenação económico-social deixaram de ser aqueles que os tipos incriminadores do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro procuravam tutelar.

O paradigma contraordenacional vigente caracteriza-se pela atribuição a este ramo do direito de um papel de direta tutela dos mais importantes bens jurídicos da nossa constituição económica, sobretudo, em relação às mais severas ofensas que lhe podem ser dirigidas, concorrendo com o direito penal económico na sua missão de proteção dos interesses vitais da organização económica constitucionalmente postulada.

Este atual paradigma obriga a uma recompreensão do conteúdo do facto punível contraordenacional e das finalidades das sanções contraordenacionais, abandonando-se ou reformulando-se aquelas conceções distintivas entre direito penal e direito contra-ordenacional baseadas numa suposta neutralidade ética da contraordenação (Nuno Brandão, Crimes e Contra-Ordenações: da Cisão à Convergência Material, Coimbra, 2016, p. 482).

É precisamente no direito regulatório que nos confrontamos com as chamadas «grandes contraordenações», num contexto em que o direito contraordenacional constitui o direito sancionatório de referência dos mais importantes sectores da sociedade e em que os comportamentos sancionados, no plano substancial, constituem um crime económico, assumindo a diferença entre direito de mera ordenação social e direito penal uma natureza meramente formal.

A elevação do valor das coimas e a severidade das sanções acessórias cominadas foram os instrumentos utilizados pelo Estado para obter a eficácia preventiva, geral e especial, das sanções, dirigidas a agentes económicos com atividades económicas de grande dimensão e que movimentam gigantescos fluxos financeiros.

Os interesses económico-materiais vitais da sociedade contemporânea encontram-se agora radicados naqueles domínios dos serviços de interesse económico geral e do sistema económico-financeiro, em que a livre concorrência desempenha um valor crucial.

A evolução do direito contraordenacional, a par da expansão do direito penal a novos bens jurídicos, tem-se processado no sentido da convergência com o direito penal, dando-se uma cada vez maior dissolução de fronteiras entre estes dois ramos do direito, visível, por excelência, no domínio do direito sancionatório das entidades reguladoras, em que os comportamentos sancionados se revestem de uma gravidade ético-jurídica semelhante à dos ilícitos penais e em que as coimas são penas pecuniárias de natureza idêntica à pena criminal de multa e de montante mais elevado. Tal como o direito penal, também o direito contra-ordenacional exerce uma função de tutela de bens jurídicos, individuais e supra-individuais, prosseguindo as sanções contraordenacionais finalidades de prevenção geral e de prevenção especial, não se esgotando numa pura admonição (cf. Nuno Brandão, «Acordos sobre a decisão administrativa e sobre a sentença no processo contra-ordenacional», Revista Portuguesa de Ciências Criminais, Ano 21, N.º 4, 2011, p. 594). Na esteira da doutrina e da jurisprudência constitucional alemãs, tende a considerar-se que o direito das contraordenações é direito penal em sentido amplo (ibidem, p. 599).

Acerca da questão de saber se esta aproximação entre direito penal e direito contraordenacional também opera em relação ao direito processual penal e aos seus princípios, admite-se que esta aproximação nunca se possa traduzir numa total recondução do direito contraordenacional ao direito penal e processual penal, havendo ainda planos de divergência material entre crimes e contraordenações e entre penas de prisão e de multa e a coima, que justificam a autonomia do direito contraordenacional. Em consequência, aceita-se que os princípios constitucionais possam assumir diferentes modos de materialização consoante estejam em causa normas penais ou contraordenacionais, sendo esta diferença justificada, sobretudo, pela diferença qualitativa entre sanções penais e contraordenacionais, no que diz respeito à privação da liberdade. É, assim, esta divergência material radicada na natureza não privativa da liberdade que confere fundamento ao tratamento constitucional diferenciado das normas penais e das normas contraordenacionais e que abre caminho à previsão de regimes legais, substantivos e processuais distintos nestes dois ordenamentos (cf. Nuno Brandão, Crimes e Contra-ordenações…ob. cit., p. 942).

O Tribunal Constitucional tem afirmado a aplicabilidade dos princípios da constituição penal ao direito das contraordenações, apesar de a sua redação se encontrar expressamente referida à lei penal, aos crimes e às penas, tendo já declarado a inconstitucionalidade de normas contraordenacionais à luz de princípios da Constituição Penal, por exemplo, no Acórdãos n.º 227/92 e n.º 150/94, em que o tribunal aplicou ao direito contraordenacional o princípio da retroatividade da lei penal de conteúdo mais favorável, consagrado no artigo 29.º, n.º 4, da CRP. No mesmo sentido, nos Acórdãos n.º 327/99 e n.º 176/2000, este Tribunal considerou extensível ao domínio do direito das contraordenações o princípio da proibição dos efeitos automáticos das penas e das condenações penais constante do artigo 30.º, n.º 4, da CRP, e, no Acórdão n.º 244/99, considerou aplicável às contraordenações o princípio constitucional ne bis in idem, embora o preceito constitucional que o consagra se dirija expressamente a factos penais (artigo 29.º, n.º 5, da CRP). Ainda no Acórdão n.º 574/95, o Tribunal afirmou que «o princípio da legalidade das sanções, o princípio da culpa e, bem assim, o princípio da proibição das sanções de duração ilimitada ou indefinida valem na sua ideia essencial, para todo o direito público sancionatório, maxime, para o domínio do direito de mera ordenação social». No mesmo sentido, o Acórdão n.º 59/95, proferido a propósito do direito disciplinar, afirmou que «Não pode haver punição disciplinar sem culpa, porque o princípio constitucional de culpa tem a ver com a existência de punição e não com o ramo de direito em que se pune. A mesma privação ou limitação de direitos pode ser o efeito quer de sanções penais, quer de sanções disciplinares».

Acórdãos mais recentes, todavia, vieram atribuir ao legislador um poder de conformação mais aberto (Acórdãos n.ºs 446/97 e 659/2006) na concretização dos princípios da constituição penal, quando está em causa o direito contraordenacional. É o caso do Acórdão n.º 128/2010, que não julgou inconstitucional, por violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da CRP, o artigo 6.º, n.º 1, do RGIT, quando interpretado no sentido de a expressão “quem agir voluntariamente como titular de um órgão de uma sociedade” abranger o administrador de facto , afirmando que «as considerações expendidas a propósito da interpretação de normas do direito penal clássico não são susceptíveis de uma transposição acrítica para o direito penal tributário». E ainda o caso do Acórdão n.º 85/2012, que nega a aplicação do princípio da tipicidade das normas penais ao direito das contraordenações a propósito de uma norma contraordenacional prevista no Código de Valores Mobiliários, com a seguinte fundamentação:

«Importa efetivamente relembrar que o Tribunal Constitucional tem constantemente sublinhado “a diferente natureza do ilícito, da censura e das sanções” entre o ilícito contraordenacional e o ilícito penal, o que justifica que os princípios que orientam o direito penal não sejam automaticamente aplicáveis ao direito de mera ordenação social. É o que resulta, por exemplo, do Acórdão n.º 344/93 (publicado in Diário da República, IIª Série, de 11-08-1993), do Acórdão n.º 278/99 (disponível no site do Tribunal Constitucional) e do Acórdão n.º 160/04, que sublinhou a “diferença dos princípios jurídico-constitucionais que regem a legislação penal, por um lado, e aqueles a que se submetem as contraordenações”. Diferença, esta, que cobra expressão, designadamente, na natureza administrativa (e não jurisdicional) da entidade que aplica as sanções contraordenacionais”. A mais recente jurisprudência do Tribunal Constitucional, precisamente a propósito da aplicação de contraordenações pela CMVM, reafirmou essa orientação, conforme resulta, por exemplo, do Acórdão n.º 537/2011 (disponível no site do Tribunal). É assim bem certo que a exigência de determinabilidade do tipo predominante no direito criminal não opera no domínio contra-ordenacional»

Conclui-se desta jurisprudência, portanto, que os princípios da constituição penal não podem ser integral e irrestritamente transpostos do domínio penal para o contraordenacional, e que deve proceder-se a uma atividade interpretativa destinada a adequar o seu alcance e conteúdo às especificidades do direito de mera ordenação social.

Contudo, no contexto da norma aqui em causa, a crescente complexidade dos tipos contraordenacionais e a crescente gravidade das sanções, bem como a estrutura inquisitória dos processos contraordenacionais, em que a entidade administrativa que investiga é a mesma que julga e decide, coloca-se com particular acuidade a importância da garantia do recurso. Esta garantia é um verdadeiro direito de ação, pois não se refere a uma decisão judicial, mas a uma decisão administrativa, proferida por entidade administrativa, sendo exigível, para que o direito à tutela efetiva e o princípio da presunção de inocência sejam respeitados, que o regime de recurso e de acesso ao tribunal não sofra restrições excessivas ou desproporcionadas.

No moderno direito contraordenacional, a necessidade de aplicação dos princípios da constituição penal faz-se sentir com maior pertinência do que no direito contraordenacional clássico, visto como um mero ilícito de desobediência à Administração, de menor gravidade do que o ilícito penal e punido com sanções mais leves do que as penais. É o que se verifica nos domínios económicos e financeiros sujeitos a supervisão das entidades reguladoras, em que as coimas podem ascender a valores na ordem dos milhões de euros e as sanções acessórias podem ser fortemente restritivas da liberdade económica e profissional dos condenados.

A este propósito, a doutrina tem partilhado as seguintes preocupações:

«Partilhamos, isso sim, as preocupações aqui e ali suscitadas quanto aos termos como as nossas entidades reguladoras frequentemente exercem os seus poderes de processamento contra-ordenacional, representativos de um inaceitável exacerbamento da matriz inquisitória que é conatural à fase administrativa do sistema processual contra-ordenacional e que se espelha em práticas que desconsideram o papel do arguido como autêntico sujeito processual, menosprezam o princípio da presunção de inocência ou enfraquecem o princípio da proibição da auto-incriminação. Nada, porém, que por si só signifique uma incompatibilidade de base entre o direito das contra-ordenações e as necessidades sancionatórias dos sectores da regulação; antes constituindo sinal da conveniência da criação de estruturas institucionais e de modelos de funcionamento que matizem aquela vocação inquisitória em favor de soluções de cariz acusatório» (cf. Nuno Brandão, Crimes e Contra-Ordenações…ob. cit., p. 485).

«Correndo o risco da injustiça própria de qualquer generalização, a impressão que frequentemente transparece tanto da instrução do processo, como dos termos em que ao arguido é permitido exercer o seu direito de audiência é que o processo é um pró-forma que é necessário cumprir para que possa finalmente ditar-se uma decisão já tomada desde início» (cf. Nuno Brandão, Acordos sobre a decisão administrativa, 2011, p. 599).

«O verdadeiro contraditório pressupõe necessariamente um árbitro, perante o qual a autoridade da investigação passe a ocupar a posição de simples parte, contraposta ao investigado segundo regras formais que tendam a assegurar uma ao menos aproximada igualdade de armas. (…) Um processo que só conheça esse debate, e em que o investigador, por um lado, seja parte do debate, e por outro lado, juiz dos resultados dele, não será um processo contraditório: será o que se chama (num dos sentidos do termo) processo inquisitório, ou inquisitorial (cf. José António Veloso, «Boas intenções, maus resultados: Notas soltas sobre investigação e processo na supervisão financeira», Revista da Ordem dos Advogados, Ano 60, 2000, p. 84).

Não estando em causa a apreciação da constitucionalidade das normas processuais que permitem a natureza inquisitória do processo contraordenacional, não poderá deixar-se, contudo, de constatar que esta realidade frisa ainda mais a importância do direito à tutela efetiva do arguido, no que diz respeito à garantia do acesso aos tribunais e ao princípio da presunção de inocência.

E a aplicação do princípio da presunção de inocência no processo contraordenacional, dada a natureza jusfundamental do princípio e a sua essencialidade para o Estado de Direito democrático, não pode variar de intensidade consoante o poder económico maior ou menor do arguido, podendo apenas ser um valor ponderável e suscetível de restrição, em função do peso de outros direitos fundamentais em conflito (pense-se por exemplo, na necessidade de proteger uma criança, num processo tutelar cível, de um progenitor indiciado por crime de abuso sexual de crianças, mas ainda não condenado), questão que não está em causa no presente processo e noutros deste tipo, pois a celeridade ou a eficácia, apesar de serem valores com proteção constitucional, não constituem manifestamente valores equiparados à presunção da inocência.

Pelo exposto, teria também proferido juízo de inconstitucionalidade material da norma extraída do artigo 67.º, n.º 5, do Estatuto da Entidade Reguladora da Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto, segundo a qual a impugnação judicial de decisões da Entidade Reguladora da Saúde que apliquem coima tem, em regra, efeito devolutivo, estando o efeito suspensivo condicionado à demonstração do prejuízo considerável causado pela execução da decisão e à prestação de caução, em substituição da coima e de montante equivalente ao desta, independentemente da sua disponibilidade económica.

     Maria Clara Sottomayor

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Vencida quanto ao juízo de inconstitucionalidade e respetiva fundamentação (cfr. II, 12.1

e 13 e III, 14, a)) desde logo na medida em que os Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), em que se insere a norma sindicada (artigo 67.º, n.º 5), foram aprovados em anexo ao Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto, o qual foi aprovado também com expresso fundamento na Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto, que previu a adaptação dos estatutos das entidades reguladoras existentes, incluindo a ERS, ao disposto na lei-quadro das entidades reguladoras (cfr. artigo 3.º, n.º 1, e n.º 3, alínea i)) – prevendo tal lei-quadro expressamente o exercício de poderes sancionatórios (cfr. em especial artigos 40.º, n.º 3, alíneas c) e d)) e 43.º) e admitindo-se o exercício de competência legislativa concorrente, no domínio em causa, em matéria contra-ordenacional; e, além disso, quanto ao princípio da presunção de inocência (entendendo o acórdão que a norma sindicada é uma lei restritiva, nomeadamente deste princípio e, nessa medida, constante de decreto-lei não autorizado, violando o disposto no artigo 165.º, n.º 1, b) da Constituição), tendo em conta a fundamentação do Acórdão n.º 376/2016, que subscrevemos, segundo a qual o princípio em causa não valerá para as decisões administrativas de aplicação de coimas com o mesmo sentido e alcance com que vale, por força do artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, para as sentenças de condenação proferidas em processo criminal.

A conhecer da questão da inconstitucionalidade material da norma em causa, e no essencial pelos fundamentos constantes daquele Acórdão n.º 376/2016 – especialmente no que respeita à possibilidade de a prestação de caução ser efetuada pela forma e montante julgados adequados ao caso concreto pelo tribunal –, teríamos concluído, igualmente por um juízo de não inconstitucionalidade.

Maria José Rangel de Mesquita»

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