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Tribunal Constitucional
Declara inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do artigo 67.º, n.º 5, dos Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto, no sentido em que determina que o recurso de impugnação das decisões finais condenatórias da ERS, que imponham uma coima, tem, por regra, efeito meramente devolutivo, ficando a atribuição de efeito suspensivo sujeita à prestação de caução e alegação de prejuízo considerável, para o recorrente, decorrente da execução da decisão
Veja também:
«Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 74/2019
Processo n.º 837/2018
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, alterada por último pela Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril, doravante LTC), a organização de processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, para apreciação da norma constante do artigo 67.º, n.º 5, dos Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto, no sentido em que determina que o recurso de impugnação das decisões finais condenatórias da ERS, que imponham uma coima, tem, por regra, efeito meramente devolutivo, ficando a atribuição de efeito suspensivo subordinada à prestação de caução e alegação de prejuízo considerável, para o recorrente, decorrente da execução da decisão.
Invoca o Requerente que tal norma foi julgada inconstitucional pelo Acórdão n.º 728/2017, juízo posteriormente reafirmado pelos Acórdãos n.os 335/2018, 336/2018, 363/2018 e 394/2018, indicando que todas as decisões referidas transitaram em julgado.
2. O Primeiro-Ministro, notificado nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, veio aos autos oferecer o merecimento dos autos.
3. Discutido o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição e no artigo 82.º da LTC, o Tribunal Constitucional aprecia, com vista a eventual declaração com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou ilegalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos. O presente processo de fiscalização abstrata sucessiva foi promovido pelo Ministério Público, ao qual, nos termos do artigo 82.º da LTC, assiste legitimidade para tal.
Encontra-se igualmente preenchido o requisito da repetição de julgados, com referência aos juízos de inconstitucionalidade proferidos nos Acórdãos n.os 335/2018, 336/2018 e 363/2018.
Efetivamente, no Acórdão n.º 728/2017, o Tribunal julgou inconstitucional «o n.º 5 do artigo 67.º do Estatuto da Entidade Reguladora da Saúde [ERS], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto», sem qualquer especificação adicional.
Por seu turno, o Acórdão n.º 394/2018 julgou inconstitucional o sentido normativo contido no mesmo n.º 5 do artigo 67.º do Estatuto da ERS, de acordo com o qual «o recurso que vise a impugnação judicial das decisões finais condenatórias da Entidade Reguladora da Saúde em processos contraordenacionais tem, por regra, efeito meramente devolutivo, ficando a atribuição de efeito suspensivo subordinada à prestação de caução e à verificação de um prejuízo considerável para o recorrente decorrente da execução», comportando, então, a imposição de uma qualquer sanção por decisão final condenatória proferida pela ERS no âmbito contraordenacional.
Já o sentido normativo julgado inconstitucional nos Acórdãos n.os 335/2018, 336/2018 e 363/2018, encontra inteira correspondência com aquele indicado pelo Requerente, circunscrito na sua previsão aos casos de condenações que imponham uma coima, encontrando-se especificado nessas três decisões que a dimensão normativa julgada inconstitucional era a que «determina que o recurso de impugnação das decisões finais condenatórias da ERS, que imponham uma coima, tem, por regra, efeito meramente devolutivo, fixando a atribuição de efeito suspensivo à prestação de caução e alegação de prejuízo considerável, para o recorrente, decorrente da execução».
Uma vez que, nos termos do n.º 3 do artigo 281.º da Constituição e do artigo 82.º da LTC, apenas pode ser objeto de um processo de generalização uma norma que tiver sido julgada inconstitucional pelo Tribunal em pelo menos três casos concretos, no presente processo de fiscalização abstrata sucessiva o Tribunal limitará a sua apreciação à dimensão normativa julgada inconstitucional pelos Acórdãos n.os 335/2018, 336/2018 e 363/2018, que se vem de enunciar.
5. A norma sub juditio consta do n.º 4 do artigo 67.º dos Estatutos da ERS, aprovados em anexo ao Decreto-Lei n.º 126/2014, dele fazendo parte integrante (artigo 2.º do decreto-lei). A formulação do preceito é a seguinte:
«Artigo 67.º
Controlo pelo tribunal competente
1 – Cabe recurso das decisões proferidas pela ERS cuja irrecorribilidade não estiver expressamente prevista no presente decreto-lei.
2 – A ERS tem legitimidade para recorrer autonomamente de quaisquer sentenças e despachos que não sejam de mero expediente, incluindo os que versem sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais, ou sobre a aplicação de medidas cautelares.
3 – O Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão conhece com plena jurisdição dos recursos interpostos das decisões em que tenha sido fixada pela ERS uma coima ou uma sanção acessória, podendo reduzir ou aumentar a coima ou alterar a sanção acessória.
4 – As decisões da ERS que apliquem sanções mencionam o disposto na parte final do número anterior.
5 – O recurso tem efeito meramente devolutivo, podendo o recorrente, no caso de decisões que apliquem coimas ou outras sanções previstas na lei, requerer, ao interpor o recurso, que o mesmo tenha efeito suspensivo quando a execução da decisão lhe cause prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução em substituição, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação de caução no prazo fixado pelo tribunal. [negrito aditado]
6 – Interposto recurso da decisão final condenatória, a ERS remete os autos ao Ministério Público, no prazo de 30 dias úteis, não prorrogável, podendo juntar alegações e outros elementos ou informações que considere relevantes para a decisão da causa, bem como oferecer meios de prova, sem prejuízo do disposto no artigo 70.º, do regime geral do ilícito de mera ordenação social.
7 – A ERS, o Ministério Público ou o arguido podem opor-se a que o tribunal decida por despacho, sem audiência de julgamento.
8 – A desistência da acusação pelo Ministério Público depende da concordância da ERS.
9 – O tribunal notifica a ERS da sentença, vem como de todos os despachos que não sejam de mero expediente.
10 – Se houver lugar a audiência de julgamento, o tribunal decide com base na prova realizada em audiência.
11 – A atividade da ERS de natureza administrativa fica sujeita à jurisdição administrativa, nos termos da respetiva legislação.»
6. Importa, para melhor compreensão, proceder ao enquadramento da norma em análise no âmbito estatutário da ERS.
Conforme salientado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 126/2014, os Estatutos da ERS, aprovados por aquele diploma, prosseguem e encadeiam dois diplomas distintos: por um lado, o Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de maio, que substituiu o diploma criador da referida entidade (Decreto-Lei n.º 309/2003, de 10 de dezembro), redefinindo as suas atribuições, organização e funcionamento; e, por outro, a Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto, que aprovou a lei-quadro das entidades reguladoras, impondo, no seu artigo 3.º, alínea i), que os estatutos daquele regulador, tal como de outros, fossem adaptados por decreto-lei ao disposto na lei-quadro então introduzida no ordenamento nacional.
Em consequência, o Governo, exercendo a competência legislativa em matéria não reservada à Assembleia da República, nos termos do artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, emitiu novo diploma estatutário da ERS.
Nos termos do artigo 1.º dos Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, a ERS é uma pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, de autonomia de gestão, de independência orgânica, funcional e técnica e de património próprio e goza de poderes de regulação, regulamentação, supervisão, fiscalização e sancionatórios.
A sua natureza é a de autoridade administrativa independente (artigo 267.º, n.º 3, da Constituição e artigo 1.º dos Estatutos da ERS), incumbindo-lhe o exercício de funções de regulação, de supervisão e de promoção e defesa da concorrência respeitantes às atividades económicas na área da saúde dos setores privado, público, cooperativo e social.
Para a realização da respetiva missão, que se inscreve na incumbência prioritária do Estado de proteção da saúde (artigo 64.º da Constituição), foram cometidas à ERS diversas atribuições: a regulação da atividade dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde; a supervisão da atividade e funcionamento dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde no que respeita ao cumprimento dos requisitos de exercício da atividade e de funcionamento, incluindo o licenciamento dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde; a garantia dos direitos relativos ao acesso aos cuidados de saúde, à prestação de cuidados de saúde de qualidade, e dos demais direitos dos utentes; a legalidade e transparência das relações económicas entre os diversos operadores, entidades financiadoras e utentes.
O diploma incorpora o regime sancionatório próprio da ERS, de acordo com o capítulo VI dos Estatutos, contemplando a definição de tipos contraordenacionais específicos (artigo 61.º), previsão de sanções acessórias (artigo 62.º) e critérios de determinação da medida da coima (artigo 63.º), assim como estipulações em matéria prescricional (artigo 64.º), publicidade das sanções impostas (artigo 65.º) e responsabilidade pelas infrações (artigo 66.º). Culmina o capítulo com o artigo 67.º, transcrito supra, no qual são inscritas disposições em matéria de processo contraordenacional, designadamente em matéria de impugnação judicial de decisão da ERS que imponha uma coima e respetivo efeito, preceituado que deverá ser conjugado com os princípios gerais decorrentes do regime geral do ilícito de mera ordenação social (constante do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro), incluindo os princípios da audiência e do contraditório, para os quais remete expressamente a alínea b) do artigo 24.º dos Estatutos da ERS.
7. No quadro sumariamente referido, o Governo introduziu nos Estatutos da ERS norma que atribui ao recurso da decisão final condenatória que aplique coima efeito meramente devolutivo, salvo quando o acoimado, ao interpor o recurso, requeira a atribuição de efeito suspensivo e, concomitantemente, alegue que a execução da decisão lhe causa prejuízo considerável, se ofereça para prestar caução em substituição e, bem assim, que tal prestação seja efetivada no prazo para tanto fixado pelo tribunal.
Trata-se de opção normativa sem paralelo no regime legal precedente. Efetivamente, o Decreto-Lei n.º 309/2003, que criou a ERS e definiu originariamente as suas atribuições, organização e funcionamento, estipulava, no seu artigo 49.º, n.os 1 e 2, que apenas os recursos de decisões não sancionatórias, despachos ou outras medidas adotadas pela ERS comportavam efeito devolutivo, remetendo a disciplina dos recursos das decisões condenatórias em coima ou outra sanção para o regime geral, através do reenvio para os «termos da lei». Também o Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de maio, que substituiu o Decreto-Lei n.º 309/2003, não continha norma especial relativa ao efeito da impugnação para os tribunais de decisões administrativas sancionatórias da ERS, limitando-se a consagrar, no n.º 2 do artigo 58.º, a recorribilidade de tais atos.
Por outro lado, a norma sobre os efeitos do recurso, inovatoriamente inscrita em 2014 nos Estatutos da ERS, afasta-se do que resulta do regime geral dos ilícitos de mera ordenação social. Neste, o recurso de decisões administrativas condenatórias em processos contraordenacionais tem efeito suspensivo [alínea a) do n.º 1 do artigo 408.º do Código de Processo Penal ex vi artigo 41.º do RGCO].
Importa referir que este regime-regra tem sofrido desvios no âmbito dos processos contraordenacionais instaurados por entidades reguladoras, verificando-se que o sentido normativo em apreço mostra-se idêntico ou próximo de outros, nos quais o legislador optou igualmente por consagrar o efeito meramente devolutivo da impugnação para Tribunal de decisão administrativa sancionatória, com subordinação da atribuição do efeito suspensivo, obstando à exequibilidade da coima, à verificação de requisitos.
Efetivamente, a norma constante do n.º 5 do artigo 67.º dos Estatutos da ERS é idêntica à que foi consagrada no n.º 5 do artigo 84.º da Lei da Concorrência (Lei n.º 19/2012, de 8 de maio) para as sanções aplicadas pela Autoridade da Concorrência; assume identidade com a dos n.os 4 e 5 do artigo 46.º do regime sancionatório do setor energético (Lei n.º 9/2013, de 28 de janeiro), relativamente às sanções aplicadas pela Entidade Reguladora do Setor Energético; e também com a norma do n.º 4 do artigo 43.º dos Estatutos da Autoridade de Mobilidade e dos Transportes, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 78/2014, de 14 de maio (também ele emitido com o propósito de dar cumprimento à obrigação de adaptação à lei-quadro das entidades reguladoras, editada em 2013).
Pode ainda encontrar-se similitude, no acolhimento do efeito não suspensivo da impugnação judicial da condenação em coima, com o estatuído no n.º 4 do artigo 75.º dos Estatutos da Entidade Reguladora da Comunicação Social, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 8 de novembro. O mesmo pode ser dito da solução normativa acolhida no que se refere à impugnação judicial de sanções aplicadas pelo Banco de Portugal, quanto às infrações contraordenacionais tipificadas no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (aprovado pelo do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro; a norma aludida consta do artigo 228.º-A, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 157/2014, de 24 de outubro), neste caso com redução do montante da caução a prestar a metade do valor da coima, podendo a garantia ser dispensada, no todo ou em parte, em caso de demonstração de insuficiência de meios para tal.
Deve ser notado, todavia, que o afastamento do efeito suspensivo do recurso enquanto regime-regra não é transversal a todos os regimes contraordenacionais atinentes a entidades reguladoras. Conservam o modelo geral de atribuição de efeito suspensivo à impugnação das sanções por elas aplicadas, os recursos de decisões da Autoridade Nacional de Comunicações que imponham coimas (artigo 51.º, n.º 3, dos Estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 39/2015, de 16 de março); os recursos de decisões da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (artigo 416.º do Código de Valores Mobiliários); da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (artigo 52.º dos Estatutos, aprovados pela Lei n.º 10/2014, de 6 de março); da Autoridade Nacional da Aviação Civil (artigo 41.º, n.º 2, dos Estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 40/2015, de 16 de março); e da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (artigo 209.º da Lei n.º 147/2015, de 9 de setembro).
8. Feito este percurso pelo regime de várias entidades reguladoras independentes, podemos concluir, retomando o que foi referido nos Acórdãos n.os 335/2018, 336/2018 e 363/2018:
– Em primeiro lugar, que a atribuição de poderes sancionatórios constitui um dos aspetos que caracteriza o modelo próprio de justiça da regulação (Pedro Gonçalves, Catarina Gouveia Alves e Ana Cláudia Guedes, O Contencioso da Regulação em Portugal – Relatório de Pesquisa e Análise da Jurisprudência sobre Regulação Pública, Cedipre, Coimbra, 2010, p. 8), pois é uma nota comum na profunda disparidade e heterogeneidade do modelo de atuação das várias entidades;
– Em segundo lugar, a consagração de desvios às regras processuais gerais é enformada pela convicção do legislador de que o regime geral das contraordenações e coimas não é adequado à atuação das entidades reguladoras no respetivo âmbito setorial, impondo-se uma modificação ou adaptação do seu regime ao circunstancialismo que envolve a atuação daquelas (cf. Paulo Sousa Mendes, «O procedimento sancionatório especial por infrações às regras da concorrência», Regulação em Portugal: novos tempos, novo modelo?, Almedina, Coimbra, 2009, p. 707).
É neste contexto que se coloca a opção legislativa consubstanciada na consagração de um efeito meramente devolutivo para a impugnação para o juiz de decisão de autoridade administrativa que imponha coima, perseguindo o desiderato de incrementar a eficácia dos respetivos poderes sancionatórios, à semelhança do que acontece com a possibilidade de reformatio in pejus. Assim foi reconhecido no Acórdão n.º 376/2016, referindo-se ao regime da concorrência:
«Antecipa-se, sem dificuldade, que o legislador, na modelação do regime de impugnação das decisões sancionatórias proferidas por tais entidades administrativas, tenha ponderado a necessidade de conferir maior eficácia aos respetivos poderes sancionatórios, de modo a garantir, no plano substantivo, uma maior proteção aos valores e bens tutelados nos específicos domínios normativos em que atuam. Atribuindo, em regra, efeito devolutivo ao recurso, e condicionando o efeito suspensivo à prestação de caução e à existência de ‘prejuízo considerável’, procura-se minimizar os recursos judiciais infundados cujo objetivo seja protelar no tempo o pagamento da coima. Se conjugarmos a opção legal de atribuir à impugnação efeito meramente devolutivo com o afastamento da regra da proibição da reformatio in pejus vigente na Lei da Concorrência (artigo 88.º n.º 1), maior evidência assume o propósito desincentivador subjacente à nova regulamentação legal sobre a matéria.»
A norma em apreço, pertencente ao domínio material da regulação de atividades de saúde, inscreve-se, pois, numa tendência de afastamento das soluções normativas gerais em matéria contraordenacional, a partir da criação de autoridades com um feixe de poderes orientados teleologicamente pelas tarefas de velar pelo funcionamento do mercado e garantir a qualidade dos serviços prestados em determinado setor, mormente através da atribuição de mecanismos sancionatórios eficazes.
9. Conforme relatado, a normação contida no n.º 5 do artigo 67.º dos Estatutos da ERS foi apreciada e julgada organicamente inconstitucional por várias vezes.
No Acórdão n.º 728/2017, entendeu-se que a norma, na parte em que consagra o princípio do efeito devolutivo da impugnação judicial e condiciona a obtenção de efeito suspensivo do recurso, constitui lei restritiva de direitos, liberdades e garantias, nomeadamente, do princípio da presunção de inocência, consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição, e aplicável, por força do n.º 10 do mesmo preceito da Lei Fundamental, em matéria contraordenacional. Assim sendo, constando a norma restritiva de um decreto-lei emitido pelo Governo sem para tal estar autorizado, considerou-se violada a reserva legislativa da Assembleia da República prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º, da Constituição, parâmetro constitucional que fundou o julgamento de inconstitucionalidade orgânica que versou, sem distinção, todos os sentidos normativos contidos no n.º 5 do artigo 67.º dos Estatutos da ERS. A mesma fundamentação e juízo encontra-se nas Decisões Sumárias n.os 869/2017 e 150/2018.
Por seu turno, nos Acórdãos n.os 335/2018, 336/2018 e 363/2018 – que versaram a norma com a formulação indicada pelo requerente – assim como no Acórdão n.º 394/2018 – que, como se disse supra, apreciou uma dimensão normativa mais ampla – o juízo de inconstitucionalidade orgânica fundou-se igualmente na violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º, em conjugação com os n.os 2 e 10 do artigo 32.º, da Constituição, e também na violação do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º, da Lei Fundamental. No mesmo sentido decidiram igualmente, com remissão para a jurisprudência atrás referida, os Acórdãos n.os 468/2018, 467/2018 e 554/2018, assim como as Decisões Sumárias n.os 638/2018, 748/2018, 756/2018 e 898/2018.
Vejamos, então, cada um dos parâmetros constitucionais mobilizados nas decisões referidas.
10. O princípio da presunção da inocência consta do artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, sendo assegurado, por via do n.º 10 do mesmo artigo, no domínio sancionatório contraordenacional.
Assim vem sendo afirmado pelo Tribunal, mormente no Acórdão n.º 674/2016:
«O Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente que não existe um paralelismo automático entre os institutos e regimes próprios do processo penal e do processo contraordenacional, não sendo, por conseguinte, diretamente aplicáveis a este todos os princípios constitucionais próprios do processo criminal.
Como ainda recentemente se afirmou no Acórdão n.º 373/2015, no ponto 1 da Fundamentação, o ‘conteúdo das garantias processuais é diferenciado, consoante o domínio do direito punitivo em que se situe a aplicação […] no âmbito contraordenacional, atendendo à diferente natureza do ilícito de mera ordenação e à sua menor ressonância ética, em comparação com o ilícito criminal, é menor o peso do regime garantístico, pelo que as garantias constitucionais previstas para os ilícitos de natureza criminal não são necessariamente aplicáveis aos ilícitos contraordenacionais ou a outros ilícitos no âmbito de direito sancionatório (cf., neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos n.os 158/92, 50/99, 33/2002, 659/2006, 99/2009 e 135/2009)’.
De outro lado, o Tribunal tem também sublinhado que a inexigibilidade de estrita equiparação entre processo contraordenacional e processo criminal não invalida ‘a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contraordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matérias de processo penal’ (Acórdão n.º 469/97, ponto 5, retomado no Acórdão n.º 278/99, ponto II.2.).
11. O princípio da presunção de inocência pertence àquela classe de princípios materiais do processo penal que, enquanto constitutivos do Estado de direito democrático, são extensíveis ao direito sancionatório público. Sendo expressão do direito individual das garantias de defesa e de audiência, este princípio encontra, pois, aplicação também no processo contraordenacional, como decorre dos n.os 2 e 10 do artigo 32.º da Constituição.
Nestes termos, no processo contraordenacional, como em qualquer outro processo sancionatório, o arguido presume-se inocente até se tornar definitiva a decisão sancionatória contra si proferida, o que, neste caso, se consubstancia no momento em que a decisão administrativa se torne inatacável ou, no caso de impugnação, até ao trânsito em julgado da sentença judicial que dela conhecer.
O estatuto processual do arguido no processo contraordenacional, enformado pela garantia da presunção de inocência, permite, por exemplo – e para o que agora releva -, que o tratamento do arguido ao longo do processo seja configurado sem perder de vista a possibilidade de verificação da sua inocência, não sendo de admitir, designadamente, que a autoridade administrativa considere o arguido culpado antes de formalizar o juízo sancionatório de forma necessariamente fundamentada.»
Delimitado nesses termos o âmbito de aplicação do princípio da presunção de inocência no domínio contraordenacional, mostra-se inequívoco que a norma sub juditio, ao determinar que o recurso de impugnação das decisões finais condenatórias da ERS que imponham uma coima tem, por regra, efeito meramente devolutivo, condicionando a atribuição de efeito suspensivo a um conjunto de requisitos, constitui uma compressão de tal garantia constitucional.
Como se afirma no Acórdão n.º 123/2018:
«[P]arece difícil negar que (a possibilidade) de execução imediata de uma sanção baseada em condenação administrativa com a qual o visado se não conforma, e que pretende discutir em juízo, atinge o direito à presunção de inocência. A extensão do princípio da presunção de inocência aos processos contraordenacionais implica que o arguido deve ser presumido inocente – o que significa, desde logo, que não deverá sofrer qualquer sanção punitiva -, até que se verifique uma de duas condições: a consolidação da condenação administrativa pelo facto da sua não impugnação dentro do prazo previsto na lei ou a confirmação da condenação administrativa no âmbito de recurso judicial interposto pelo arguido. A execução da sanção pressupõe a ‘culpa’ do visado, que é inevitavelmente presumida sempre que a condenação encerre um juízo de responsabilidade que a ordem jurídica reputa provisório, ainda para mais quando seja proferido por uma entidade administrativa. Em suma, a solução legal permite que o arguido apenas provisoriamente condenado seja sujeito a tratamento idêntico ao do arguido cuja condenação é definitiva».
Ora, o artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição dispõe que é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre direitos, liberdades e garantias. Deste modo, a norma em apreciação, ao comprimir sem autorização parlamentar um direito fundamental da natureza dos direitos, liberdades e garantia, padece de inconstitucionalidade orgânica.
11. Em qualquer caso, a dimensão normativa em análise padece de um outro vício de natureza orgânica, agora por ofensa da reserva parlamentar estatuída na parte final da alínea d) do mesmo n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
Dando sequência a evolução legislativa anterior, através da qual se operou a progressiva autonomização do direito penal quer do direito disciplinar, quer do direito de mera ordenação social, no âmbito da 1.ª Revisão Constitucional foi consagrada a inclusão na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República do «regime geral da punição das infrações disciplinares, bem como dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo». Na expressão do então deputado Jorge de Miranda, a justificação para tais aditamentos decorreu de «correspond[erem] a realidades já existentes na ordem jurídica portuguesa que têm uma conexão bem marcada com a matéria do direito criminal e dificilmente se compreendia que a Assembleia da República não tivesse, ao menos em princípio, uma reserva de competência acerca dessas matérias» [Diário da Assembleia da República, 2.ª série, de 27 de janeiro de 1982, p. 904 (1)]. Desse modo, e como se sublinha, por exemplo, no Acórdão n.º 155/91, a reserva parlamentar consagrada na alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição (numeração resultante da Lei Constitucional n.º 1/97; corresponde ao anterior artigo 168.º) exprime a semelhança de natureza entre esses novos ramos de direito e o direito penal ao falar do «regime geral de punição» dos respetivos ilícitos, todos integrantes do direito público sancionatório.
Assim, é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, definir a natureza do ilícito, a tipologia sancionatória dos ilícitos contraordenacionais, fixar os limites mínimo e máximo das coimas, assim como definir as linhas gerais da tramitação processual a seguir para a aplicação concreta de tais sanções. Significa isto que o Governo só pode editar normas, que façam parte do regime geral das infrações contraordenacionais, desde que munido de autorização legislativa, podendo legislar, sem necessidade de autorização parlamentar, fora desse regime geral, designadamente, na criação de concretos ilícitos contraordenacionais e fixação da moldura das coimas que cabem a cada infração, desde que se mova dentro dos limites da lei de enquadramento, e bem assim na estatuição de regras secundárias do processo contraordenacional correspondente (cf., entre muitos, os Acórdãos n.os 56/84, 255/88, 3/89, 356/89, 155/91, 329/92, 441/93, 74/95, 175/97, 62/2003, 578/2009, 274/2012 e 374/2013).
A norma em apreço, relativa ao efeito do recurso judicial em condenação por infração contraordenacional, foi editada pelo Governo ao abrigo da sua competência legislativa geral, prescrita no artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, da qual decorre, como se viu, habilitação legiferante para a definição das normas secundárias do regime processual contraordenacional em questão.
Coloca-se, pois, a questão de saber se a solução normativa instituída se conteve nesse âmbito, sem atingir uma das traves mestras em que assenta o regime geral dos ilícitos de mera ordenação social. A resposta não pode deixar de ser negativa.
12. O Regime Geral das Contraordenações (RGCO), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, não contém diretamente no seu enunciado a disciplina sobre a matéria do efeito do recurso judicial da decisão final condenatória proferida pela entidade administrativa. Conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial uniforme, essa matéria encontra-se compreendida na remissão operada pelo artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, para a aplicação subsidiária, com as devidas adaptações, dos «preceitos reguladores do processo criminal» (e não apenas as normas contidas no Código de Processo Penal), designadamente, para a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 408.º do CPP, que consagra o efeito suspensivo da decisão condenatória, implicando que esta, por via de princípio, não pode ser executada sem prévia decisão do recurso.
A afinidade estrutural e material entre os dois ramos do direito sancionatório público, subjacente ao mecanismo de reenvio normativo, encontra manifestação plena na matéria do efeito do recurso e exequibilidade da decisão impugnada, pela sua fundamentalidade, integrando opção político-legislativa estruturante e basilar, ordenadora quer do direito penal, quer do direito contraordenacional.
Na verdade, e como se referiu nos Acórdãos n.º 335/2018, 336/2018, 363/2018 e 394/2018, para além da referida remissão para o regime do processo penal, o diploma de enquadramento do direito de ordenação social não deixou de integrar disciplina que tem implícita a opção fundamental pelo efeito suspensivo da impugnação judicial, vedando a execução da decisão administrativa sancionatória em caso da impugnação prevista no artigo 59.º do RGCO. É o que decorre do artigo 58.º do RGCO, onde se estipulam os requisitos a que deve obedecer a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias, sendo imposta a explicitação, no texto da própria decisão, que a condenação apenas se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada [n.º 2, alínea a)] e que o termo inicial do prazo para pagamento da coima apenas ocorre «após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão» [n.º 3, alínea a)].
Temos, então, que o legislador governamental, ao estipular como regime-regra da impugnação judicial o efeito devolutivo, veio regular matéria coberta pelo regime geral do processo contraordenacional, que alterou no âmbito regulatório da saúde sem que se encontrasse credenciado por autorização parlamentar, infringindo desse modo a reserva relativa de competência da Assembleia da República, estabelecida pela alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
13. Conclui-se, assim, que a norma do artigo 67.º, n.º 5, dos Estatutos da ERS, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto, no sentido em que determina que o recurso de impugnação das decisões finais condenatórias da ERS, que imponham uma coima, tem, por regra, efeito meramente devolutivo, ficando a atribuição de efeito suspensivo subordinada à prestação de caução e alegação de prejuízo considerável, para o recorrente, decorrente da execução da decisão, é organicamente inconstitucional por violação da competência reservada da Assembleia da República, constante das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 165.º, conjugadas com os n.os 2 e 10 do artigo 32.º, ambos da Constituição.
Cumpre, portanto, declarar a sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se declarar inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do artigo 67.º, n.º 5, dos Estatutos da ERS, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto, no sentido em que determina que o recurso de impugnação das decisões finais condenatórias da ERS, que imponham uma coima, tem, por regra, efeito meramente devolutivo, ficando a atribuição de efeito suspensivo sujeita à prestação de caução e alegação de prejuízo considerável, para o recorrente, decorrente da execução da decisão, por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, constante do artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e d), em conjugação com o artigo 32.º, n.os 2 e 10, ambos da Constituição.
Notifique.
Lisboa, 29 de janeiro de 2019. – Tem voto de concordância a Sr.ª Conselheira Maria José Rangel de Mesquita, que não assina por não estar presente – Fernando Vaz Ventura – Catarina Sarmento e Castro – Cláudio Monteiro – Joana Fernandes Costa – Lino Rodrigues Ribeiro – Pedro Machete – José Teles Pereira – Maria de Fátima Mata-Mouros (com declaração) – Maria Clara Sottomayor (com declaração) – João Pedro Caupers – Gonçalo Almeida Ribeiro – Manuel da Costa Andrade.
Declaração de voto
Voto o presente acórdão por considerar que a norma objeto de fiscalização viola o artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e d), da Constituição, de onde resulta a sua inconstitucionalidade. No entanto, considero que a desconformidade com o artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição não decorre apenas da ilegítima compressão do princípio da presunção de inocência, como é aqui defendido, mas também e essencialmente da compressão do direito fundamental de acesso à tutela jurisdicional e aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, tal como sustentado no Acórdão n.º 674/2016 e no meu voto aposto ao Acórdão n.º 123/2018. Assim, porque parto de premissa diversa, não acompanho integralmente a fundamentação do Acórdão nessa parte. – Maria de Fátima Mata-Mouros.
Declaração de voto
Remeto para a declaração de voto por mim apresentada no Acórdão n.º 728/2017, acerca da interpretação normativa extraída do artigo 67.º, n.º 5, do Estatuto da Entidade Reguladora da Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto, tal como tem vindo a ser aplicada pelos tribunais comuns, distinta daquela a que se reporta o presente processo de generalização, e que consiste naquela que impõe que o efeito suspensivo da impugnação judicial da decisão da entidade reguladora que aplica uma coima tenha como condição uma obrigação de pagamento de caução equivalente ao valor da coima, sem permitir nem a dispensa da caução, nem a graduação do seu montante, mesmo em situações de insuficiência económica. Apesar de, neste processo, não estar em causa a inconstitucionalidade material, transcrevo a posição por mim defendida em declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 728/17, e que mantenho: «[…] consubstanciando a inconstitucionalidade material um vício mais grave do que o da inconstitucionalidade orgânica, não teria conhecido apenas desta, mas também da constitucionalidade material. E tal juízo não seria inútil. É que a inconstitucionalidade orgânica, referindo-se a uma questão de repartição de competências entre Governo e Assembleia da República, invalida a totalidade do preceito legal, invalidade que pode ser sanada por uma posterior lei de autorização. Contudo, a função do Tribunal Constitucional, mais do que fiscalizar a observância das regras de competência dos órgãos de soberania, consiste na proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos através de juízos de inconstitucionalidade sobre normas ou interpretações normativas que violem normas ou princípios constitucionais, dos quais se deduzam direitos fundamentais. Importa, portanto, informar os operadores judiciários, e indiretamente o legislador, de dimensões normativas que não podem ser aceites por não serem conformes com a lei fundamental». […] «A utilidade deste juízo é evidente para que os operadores judiciários conheçam as dimensões normativas inconstitucionais e não as apliquem, e para que a Assembleia da República, ao sanar a inconstitucionalidade orgânica, possa também alterar o conteúdo da norma, tornando-a conforme às normas constitucionais que consagram direitos fundamentais». – Maria Clara Sottomayor.»