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Parecer do Ministério Público sobre a constituição de equipas médicas nos serviços de urgência (projeto de regulamento da Ordem dos Médicos)

«Parecer (extrato) n.º 9/2022

Sumário: Constituição de equipas médicas nos serviços de urgência (projeto de regulamento da Ordem dos Médicos).

Conclusões

1.ª A Ordem dos Médicos é uma associação pública profissional, que se encontra vinculada ao Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 282/77, de 5 de julho, na sua atual redação, e à Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro (Regime da Criação, Organização e Funcionamento das Associações Públicas Profissionais).

2.ª Encontra-se, como tal, sujeita ao controlo tutelar de legalidade previsto no artigo 45.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, a exercer pela Ministra da Saúde, em conformidade com o artigo 158.º do Estatuto da Ordem dos Médicos.

3.ª O projeto de regulamento denominado Constituição das Equipas Médicas nos Serviços de Urgência versa especialidades e competências médicas, motivo por que a sua eficácia jurídica se encontra condicionada pela aprovação da Ministra da Saúde, nos termos do artigo 45.º, n.º 5, da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro.

4.ª Não obstante tal preceito referir-se a homologação, dispõe que a sua prática é condição de eficácia do regulamento, o que significa tratar-se, na verdade, de um ato de tutela integrativa a posteriori, i.e. de aprovação, à semelhança do que se determina para os atos administrativos no artigo 157.º, alínea a) do Código do Procedimento Administrativo.

5.ª De resto, a homologação em sentido próprio seria incompatível com a tutela administrativa exercida sobre a administração autónoma, pois o órgão que homologa faz seu o ato homologado – como sucede, tipicamente, na hierarquia administrativa e, eventualmente, na superintendência sobre a administração indireta – o que subverteria a posição das associações públicas profissionais como sector da administração autónoma.

6.ª A Ministra da Saúde pode recusar a aprovação do Regulamento – Constituição das Equipas Médicas nos Serviços de Urgência, depois de verificar que as suas normas se revelam ilegais, como, em concreto, sucede.

7.ª Com efeito, o Regulamento, a ser definitivamente aprovado, incorre em incompetência absoluta (também designada incompetência por falta de atribuições), pois estabelece parâmetros quantitativos e qualitativos que devem presidir à composição das equipas médicas nos serviços de urgência, repartidas por 28 especialidades, determina o conteúdo funcional do chefe de equipa e define os requisitos a serem cumpridos para os médicos em internato de formação especializada viabilizarem a operacionalidade de tais equipas, tudo isto configurando assuntos que exorbitam das atribuições da Ordem dos Médicos, tal como são enunciadas pelo artigo 3.º, n.º 1, do respetivo estatuto.

8.ª O Regulamento – Constituição das Equipas Médicas nos Serviços de Urgência visa a produção de efeitos jurídicos externos, tendo, por isso, sido submetido a consulta pública, em conformidade com o artigo 101.º do Código do Procedimento Administrativo, pelo que não pode filiar-se na atribuição enunciada pelo artigo 3.º, n.º 1, alínea b) do Estatuto da Ordem dos Médicos: «Contribuir para a defesa da saúde dos cidadãos e dos direitos dos doentes».

9.ª Contribuir, ao nível de atribuições e competências de natureza pública, significa participar, colaborar ou cooperar em ordem a um fim cuja prossecução não é privativa da Ordem dos Médicos.

10.ª Por seu turno, a atribuição consignada pelo artigo 3.º, n.º 1, alínea a) – «Regular […] o exercício da profissão de médico» – não é suficiente para habilitar a Ordem dos Médicos a definir, de modo unilateral e vinculativo, critérios de organização e funcionamento do Serviço Nacional de Saúde, até porque as associações públicas profissionais não podem concorrer com as associações sindicais (artigo 267.º, n.º 4, da Constituição) e com o respetivo âmbito de atividade (artigo 56.º).

11.ª Ao princípio da especialidade, na delimitação das atribuições das associações públicas profissionais (artigo 6.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro), acresce um princípio de tipicidade dos seus regulamentos (artigo 9.º, n.º 1), o qual impede a aprovação de regulamentos não previstos no respetivo estatuto ou em outro ato legislativo, como precisamente sucede com a matéria em causa, em face do Estatuto da Ordem dos Médicos.

12.ª O Regulamento, a ser aprovado, invadiria atribuições próprias do Estado e das entidades públicas empresariais que administram os hospitais, centros hospitalares e unidades de saúde local do Serviço Nacional de Saúde.

13.ª A constituição das equipas médicas nos serviços de urgência do Serviço Nacional de Saúde é definida pelo regulamento interno de cada unidade de saúde, a aprovar pelo conselho de administração do hospital, centro hospitalar ou unidade de saúde local (artigo 7.º, n.º 1, alínea i) dos Anexos II e III do Decreto-Lei n.º 18/2017, de 10 de fevereiro), e a homologar pela Ministra da Saúde, no exercício dos poderes de superintendência que lhe assistem (artigo 20.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 18/2017, de 10 de fevereiro).

14.ª Os regulamentos das associações públicas profissionais devem conformar-se com as normas regulamentares aprovadas pelo Governo, quer constem de regulamentos de execução das leis [artigo 199.º, alínea b) da Constituição] quer constem de regulamentos independentes [artigo 199.º, alínea g)].

15.ª De acordo com o artigo 241.º da Constituição, os regulamentos dos municípios e das freguesias, não obstante representarem o mais elevado grau de autonomia administrativa, encontram-se condicionados pelas normas regulamentares emanadas das autoridades com poder tutelar que incidam em questões de interesse nacional, o que vale, por maioria de razão, para os regulamentos das associações públicas profissionais.

16.ª Além do regulamento interno de cada serviço de urgência, a constituição das equipas médicas no Serviço Nacional de Saúde é objeto do Despacho Normativo n.º 11/2002, de 6 de março, e dos regulamentos que o executam, todos eles veiculando uma clara preferência por equipas multidisciplinares de profissionais médicos, em dedicação privilegiada aos serviços de urgência.

17.ª Pelo contrário, o Regulamento – Constituição das Equipas Médicas nos Serviços de Urgência visa criar equipas mono disciplinares, segundo várias proporções entre médicos especialistas e internos, em presença permanente ou de prevenção, segundo critérios demográficos, número de camas e níveis de responsabilidade de cada serviço de urgência.

18.ª Por conseguinte, as disposições do artigo 1.º e do artigo 2.º, n.º 1 e n.º 2, do projeto infringem o disposto no artigo 4.º do Despacho Normativo n.º 11/2002, de 6 de março, e o disposto no artigo 21.º, n.º 1, alínea a), do Despacho n.º 10 390/2014, do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde, de 25 de julho, incorrendo em violação de lei.

19.ª Infringem, de igual modo, o Despacho n.º 47/SEAS/2006, de 19 de dezembro, em cujo n.º 7 se prevê que o modo de participação da Ordem dos Médicos na constituição das equipas médicas nos serviços de urgência consiste em normas técnicas – indicação dos níveis assistenciais considerados apropriados – e que, segundo o mesmo preceito regulamentar, os diretores clínicos e os conselhos de administração adotam «sempre que possível».

20.ª A intervenção reservada à Ordem dos Médicos, no tocante à constituição de equipas médicas nos serviços de urgência, consiste, pois, na indicação dos níveis assistenciais que tem por convenientes ou desejáveis, o que corresponde ao papel dos regulamentos não jurídicos, previstos no artigo 136.º, n.º 4, do Código do Procedimento Administrativo, sob as designações seguintes, entre outras possíveis: diretivas, recomendações, instruções, códigos de conduta ou manuais de boas práticas.

21.ª Ainda que o Regulamento – Constituição das Equipas Médicas nos Serviços de Urgência viesse a produzir efeitos jurídicos, o seu âmbito de aplicação teria sempre de circunscrever-se aos profissionais inscritos na Ordem dos Médicos e aos candidatos à profissão, em conformidade com o artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, não podendo vincular, por conseguinte, as instituições do Serviço Nacional de Saúde.

22.ª O projeto, no artigo 4.º, em especial nos seus n.os 2 e 3, define o conteúdo funcional do chefe de equipa médica de urgência, em contradição com os regimes das carreiras médicas, assim violando, especificamente o artigo 17.º-A, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 176/2009 e o artigo 23.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 177/2009, ambos de 4 de agosto.

23.ª Onde a lei prevê que o chefe de equipa, subsidiariamente, presta funções assistenciais aos doentes – i.e. na margem de disponibilidade que as tarefas de direção lhe consintam – o projeto de regulamento priva-o, por completo, de tais funções.

24.ª Além de a Ordem dos Médicos estar obrigada a conformar toda a sua atividade administrativa com a lei e com os regulamentos do Governo, não pode, em caso algum intervir em assuntos de cariz sindical (artigo 267.º, n.º 4 da Constituição) – como sucede com as carreiras médicas – nem pode condicionar as relações económicas ou profissionais dos seus membros (artigo 5.º, n.º 2 da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, e artigo 3.º, n.º 2, do Estatuto da Ordem dos Médicos).

25.ª O Regulamento incorre, ainda, em desvio de poder, pois o motivo principalmente determinante da sua aprovação – conformar as equipas médicas de urgência segundo o paradigma da Ordem dos Médicos – contradiz o fim próprio das normas de competência regulamentar – regular o exercício da profissão segundo os princípios éticos e deontológicos.

26.ª No artigo 2.º, n.º 3, as prescrições do Regulamento são consideradas referência deontológica para todos os médicos, não obstante faltar-lhes dimensão axiológica e reiteração ou permanência que, segundo o artigo 1.º do Código Deontológico, são elementos constitutivos dos princípios e regras da deontologia médica.

27.ª O desenvolvimento de princípios e regras deontológicos não pode servir para inculcar entre os profissionais médicos – designadamente, diretores clínicos e diretores de serviços de urgência – a convicção de que o trabalho em equipa multidisciplinar, prestado segundo o modelo atualmente praticado, constitui exercício da profissão eticamente reprovável.

28.ª São, simplesmente, normas técnicas, parâmetros quantitativos e qualitativos, cuja aplicação pertence à administração hospitalar e, não, aos médicos. Normas e parâmetros que, pela sua volatilidade e contingência, nunca poderiam constituir desenvolvimento de princípios deontológicos.

29.ª O dever deontológico de exercer a profissão em conformidade com as leges artis diz respeito ao ato médico, (artigo 10.º, n.º 1, do Código Deontológico) competindo a cada profissional prestar os melhores cuidados ao seu alcance (artigo 5.º) e cumprir as ordens e instruções do superior hierárquico que não cerceiem a sua autonomia ética e técnico-científica (artigo 6.º) nem impliquem a prática de um crime (artigo 271.º, n.º 3 da Constituição).

30.ª Por isso, a responsabilidade de cada médico é individualmente apreciada, ao prestar serviço em equipas multidisciplinares: forma de organização do trabalho médico que o Código Deontológico não ignora, muito menos condena (artigo 9.º, n.º 2).

31.ª A ser aprovado o Regulamento – Constituição das Equipas Médicas nos Serviços de Urgência as suas normas devem considerar-se nulas.

32.ª À invalidade das normas regulamentares por incompetência absoluta, por violação de lei ou por desvio de poder encontra-se associada a nulidade, como valor jurídico negativo, considerando que o artigo 144.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo e o artigo 74.º, n.º 1, do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, permitem que seja declarada a todo o tempo, como é próprio do regime dos atos nulos.

33.ª Conquanto o artigo 144.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo e o artigo 74.º, n.º 2, do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, estabeleçam um prazo de apenas seis meses para a impugnação ou declaração oficiosa da ilegalidade de normas administrativas, ambas as disposições pressupõem tratar-se de vícios procedimentais ou de forma, o que não é o caso de nenhum dos vícios das normas do projeto de Regulamento.

https://www.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/pp2022009.pdf

Este parecer foi votado na sessão do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 14 de julho de 2022.

Carlos Adérito da Silva Teixeira – Eduardo André Folque da Costa Ferreira (Relator) – Maria Isabel Fernandes da Costa – João Conde Correia dos Santos – Marta Cação Rodrigues Cavaleira – Maria de Fátima da Graça Carvalho – Amélia Maria Madeira Cordeiro.

Este parecer foi homologado por despacho de 5 de agosto de 2022, de Sua Excelência a Ministra da Saúde.

22 de agosto de 2022. – A Secretária-Geral da Procuradoria-Geral da República, Ana Cristina de Lima Vicente.»

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