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Nova Lei da Saúde Mental

«Lei n.º 35/2023

de 21 de julho

Aprova a Lei da Saúde Mental, altera legislação conexa, o Código Penal, o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e o Código Civil e revoga a Lei n.º 36/98, de 24 de julho

A Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, o seguinte:

CAPÍTULO I

Disposições gerais

Artigo 1.º

Objeto

1 – A presente lei dispõe sobre a definição, os fundamentos e os objetivos da política de saúde mental, consagra os direitos e deveres das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e regula as restrições destes seus direitos e as garantias de proteção da sua liberdade e autonomia.

2 – A presente lei procede, ainda, à:

a) Alteração ao Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado em anexo à Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro;

b) Segunda alteração à Lei n.º 25/2012, de 16 de julho, que regula as diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, e a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital, alterada pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto;

c) Alteração à Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto;

d) Alteração ao Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro;

e) Alteração ao Regulamento das Custas Processuais, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro;

f) Primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 70/2019, de 24 de maio, que adapta as regras aplicáveis à execução das medidas de internamento em unidades de saúde mental não integradas no sistema prisional;

g) Primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 113/2021, de 14 de dezembro, que estabelece os princípios gerais e as regras da organização e funcionamento dos serviços de saúde mental;

h) Alteração ao Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966;

i) Quarta alteração ao Decreto-Lei n.º 137/2019, de 13 de setembro, que aprova a nova estrutura organizacional da Polícia Judiciária, alterado pelas Leis n.os 79/2021, de 24 de novembro, e 2/2023, de 16 de janeiro, e pelo Decreto-Lei n.º 8/2023, de 31 de janeiro.

Artigo 2.º

Definições

Para efeitos da presente lei, entende-se por:

a) «Doença mental», a condição caracterizada por perturbação significativa das esferas cognitiva, emocional ou comportamental, incluída num conjunto de entidades clínicas categorizadas segundo os critérios de diagnóstico da Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde;

b) «Tratamento involuntário», o tratamento decretado ou confirmado por autoridade judicial, em ambulatório ou em internamento;

c) «Pessoa de confiança», a pessoa escolhida por quem tem necessidade de cuidados de saúde mental, expressamente indicada para, com a sua concordância, lhe prestar apoio no exercício dos seus direitos.

CAPÍTULO II

Política de saúde mental

Artigo 3.º

Definição da política de saúde mental

1 – Cabe ao Governo, através do Ministério da Saúde, definir a política de saúde mental e promover a respetiva execução, acompanhamento, avaliação e fiscalização, assim como coordenar a sua ação com a dos serviços e organismos públicos das áreas governativas com intervenção direta ou indireta na área da saúde mental.

2 – A política de saúde mental tem âmbito nacional e é transversal, dinâmica e evolutiva, adaptando-se ao progresso do conhecimento científico e às necessidades, contextos e recursos disponíveis a nível nacional, regional e local, visando a obtenção de ganhos em saúde.

Artigo 4.º

Fundamentos da política de saúde mental

1 – Sem prejuízo do disposto na Lei de Bases da Saúde, aprovada em anexo à Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro, são fundamentos da política de saúde mental:

a) A prestação de cuidados de saúde mental centrados na pessoa, reconhecendo a sua individualidade e subjetividade, necessidades específicas e nível de autonomia;

b) A prestação de cuidados de saúde mental no ambiente menos restritivo possível, devendo o internamento hospitalar ter lugar como medida de último recurso;

c) A prestação de cuidados de saúde mental assegurada por equipas multidisciplinares habilitadas a responder, de forma integrada e coordenada, às diferentes necessidades de cuidado das pessoas;

d) O acesso de todas as pessoas, em condições de igualdade e de não discriminação, a cuidados de saúde mental de qualidade e no tempo considerado clinicamente aceitável;

e) A existência de serviços de saúde mental coordenados, abrangentes e integrados de forma a assegurar a proximidade e a continuidade de cuidados;

f) A garantia da equidade na distribuição de recursos afetos à saúde mental e na utilização de serviços de saúde mental e a adoção de medidas de diferenciação positiva.

2 – A abordagem de saúde pública para a saúde mental assegura a sua promoção e o bem-estar da pessoa, os cuidados de saúde, a residência e o emprego, em paralelo com a prevenção das doenças e o seu tratamento em todas as fases da vida.

Artigo 5.º

Objetivos da política de saúde mental

São objetivos da política de saúde mental:

a) Promover a titularidade efetiva dos direitos fundamentais das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e combater o estigma face à doença mental;

b) Melhorar a saúde mental das populações, nomeadamente através da implementação efetiva e sustentável de medidas que contribuam para a promoção da saúde mental, para a prevenção e tratamento das doenças mentais e para a reabilitação e inclusão das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental;

c) Concluir a transição para a prestação de cuidados de saúde mental na comunidade, tendo em vista melhorar a qualidade desses cuidados e garantir a proteção dos direitos nos serviços e entidades com intervenção na área da saúde mental;

d) Assegurar a integração da saúde mental nas políticas públicas e garantir uma cooperação efetiva entre as áreas governativas com intervenção direta ou indireta na área da saúde mental;

e) Garantir a participação efetiva das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e respetivos familiares na definição das políticas e planos de saúde mental, bem como no seu acompanhamento e avaliação;

f) Fortalecer o conhecimento baseado na evidência científica e promover a implementação de boas práticas em saúde mental.

Artigo 6.º

Serviços de saúde mental

Os princípios gerais e as regras da organização e funcionamento dos serviços de saúde mental são definidos em diploma próprio, considerando-se, para efeitos da presente lei, serviços locais ou regionais de saúde mental os serviços que assim sejam qualificados nesse diploma.

CAPÍTULO III

Direitos e deveres das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental

SECÇÃO I

Direitos e deveres

Artigo 7.º

Direitos e deveres em geral

1 – Sem prejuízo do previsto na Lei de Bases da Saúde, as pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental têm o direito de:

a) Aceder a cuidados de saúde integrais e integrados de qualidade, desde a prevenção à reabilitação, que incluam respostas aos vários problemas de saúde da pessoa, adequadas ao seu enquadramento familiar e social;

b) Escolher livremente a entidade prestadora dos cuidados de saúde, tendo em vista o tratamento de proximidade indispensável à continuidade do plano integrado de cuidados, na medida dos recursos existentes;

c) Decidir, livre e esclarecidamente, a todo o momento, na medida da sua capacidade, sobre os cuidados de saúde que lhe são propostos, salvo nos casos previstos na presente lei;

d) Ver respeitadas a sua vontade e preferências, expressas no momento ou antecipadamente, sob a forma de diretivas antecipadas de vontade ou através de procurador de cuidados de saúde ou de mandatário com vista a acompanhamento, salvo nos casos previstos na presente lei;

e) Decidir, livre e esclarecidamente, a todo o momento, na medida da sua capacidade, sobre a sua participação em investigação e ensaios ou estudos clínicos ou atividades de formação, nos termos da lei;

f) Ver promovida a sua capacitação e autonomia, nos vários quadrantes da sua vida, no respeito pelas suas vontade, preferências, independência e privacidade;

g) Usufruir de condições de habitabilidade, higiene, alimentação, permanência a céu aberto, segurança, respeito e privacidade em unidades de internamento dos serviços locais ou regionais de saúde mental, estabelecimentos de internamento ou estruturas residenciais;

h) Comunicar com o exterior, através de quaisquer meios, e receber visitas de familiares, amigos, acompanhantes, procuradores de cuidados de saúde e mandatários com vista a acompanhamento, quando se encontrem em unidades de internamento dos serviços locais ou regionais de saúde mental, estabelecimentos de internamento ou estruturas residenciais;

i) Votar, ressalvadas as incapacidades previstas na lei;

j) Não ser sujeitas a medidas privativas ou restritivas da liberdade de duração ilimitada ou indefinida.

2 – As pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental a quem seja aplicada pena, medida de segurança ou medida de coação mantêm a titularidade dos direitos previstos no número anterior.

3 – Sem prejuízo do previsto na Lei de Bases da Saúde, as pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental têm o dever de:

a) Colaborar com os profissionais de saúde em todos os aspetos relevantes para a melhoria do seu estado de saúde mental;

b) Observar as regras sobre organização, funcionamento e utilização dos serviços de saúde mental e demais entidades prestadoras de cuidados de saúde mental a que recorram.

Artigo 8.º

Direitos e deveres em especial

1 – Sem prejuízo do previsto na Lei de Bases da Saúde, as pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental têm direito a não ser submetidas a:

a) Medidas coercivas, incluindo isolamento e meios de contenção físicos ou químicos, exceto nos termos previstos na presente lei;

b) Eletroconvulsivoterapia ou a estimulação magnética transcraniana sem o seu consentimento escrito, exceto nos termos previstos na presente lei;

c) Intervenções psicocirúrgicas sem o seu consentimento escrito e parecer escrito favorável de dois psiquiatras e de um neurocirurgião designados pela Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental.

2 – As pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental a quem seja aplicada pena, medida de segurança ou medida de coação mantêm a titularidade dos direitos previstos no número anterior.

3 – Em processo de tratamento involuntário, o requerido tem, em especial, o direito de:

a) Ser informado dos direitos que lhe assistem;

b) Participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvido por teleconferência a partir da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental onde se encontre;

c) Ser ouvido pelo juiz sempre que possa ser tomada uma decisão que o afete pessoalmente;

d) Ser assistido por defensor ou mandatário constituído em todos os atos processuais em que participar e ainda nos atos processuais que diretamente lhe digam respeito e em que não esteja presente;

e) Oferecer provas e requerer as diligências que se lhe afigurem necessárias;

f) Ser acompanhado por intérprete idóneo, por si escolhido ou nomeado, sempre que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa;

g) Ser acompanhado por intérprete idóneo de língua gestual, leitura labial ou expressão escrita, por si escolhido ou nomeado, quando seja surdo ou deficiente auditivo;

h) Responder por escrito a perguntas formuladas oralmente ou ser acompanhado por intérprete idóneo, por si escolhido ou nomeado, quando seja mudo;

i) Indicar pessoa de confiança, para os efeitos previstos no n.º 4 do artigo seguinte.

4 – A pessoa em tratamento involuntário tem, em especial, o direito de:

a) Ser informada e, sempre que necessário, esclarecida sobre os direitos que lhe assistem;

b) Ser esclarecida sobre os motivos do tratamento involuntário;

c) Participar, na medida da sua capacidade, na elaboração e execução do respetivo plano de cuidados e ser ativamente envolvida nas decisões sobre o desenvolvimento do processo terapêutico;

d) Ser assistida por defensor ou mandatário constituído, podendo comunicar em privado com este;

e) Participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvida por teleconferência a partir da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental onde se encontre;

f) Recorrer da decisão de tratamento involuntário e da que o mantenha;

g) Requerer a revisão da decisão de tratamento involuntário;

h) Comunicar com a comissão prevista no artigo 38.º

5 – A pessoa em tratamento involuntário tem o especial dever de se submeter aos tratamentos medicamente prescritos, sem prejuízo do disposto na alínea c) do n.º 1 e na alínea c) do número anterior.

Artigo 9.º

Exercício dos direitos

1 – No exercício dos seus direitos, o maior acompanhado é apoiado ou representado nos termos definidos na decisão judicial de acompanhamento.

2 – No exercício dos seus direitos, o maior não acompanhado sem capacidade para consentir é representado por procurador de cuidados de saúde e apoiado ou representado por mandatário com vista a acompanhamento, nos termos previstos na procuração de cuidados de saúde ou no mandato com vista a acompanhamento.

3 – No exercício dos seus direitos, o maior de 16 anos sem capacidade para consentir é representado por quem exerça as responsabilidades parentais, a tutela ou pela pessoa a quem tenha sido confiado.

4 – As pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental têm o direito de indicar pessoa de confiança que as apoie, nomeadamente no exercício dos direitos de reclamação, de apresentação de sugestões e de recurso e revisão da decisão de tratamento involuntário.

5 – A pessoa de confiança é identificada:

a) No processo clínico, nos casos em que exista acesso à informação de saúde;

b) No processo de tratamento involuntário, em auto lavrado para o efeito.

6 – A pessoa de confiança pode, para os efeitos previstos no n.º 4, aceder à informação de saúde e ao processo de tratamento involuntário.

SECÇÃO II

Casos especiais

Artigo 10.º

Diretivas antecipadas de vontade e procurador de cuidados de saúde

1 – As diretivas antecipadas de vontade e a nomeação de procurador de cuidados de saúde, em matéria de cuidados de saúde mental, obedecem ao disposto na lei.

2 – Podem constar do documento de diretivas antecipadas de vontade disposições que expressem a vontade clara e inequívoca do outorgante em matéria de cuidados de saúde mental, nomeadamente no que diz respeito a:

a) Tratamento em internamento;

b) Medidas coercivas, incluindo isolamento e meios de contenção físicos ou químicos;

c) Eletroconvulsivoterapia ou estimulação magnética transcraniana;

d) Medicação psicotrópica.

3 – Se for essa a opção do outorgante, é anexado ao documento referido no número anterior parecer médico que ateste a sua capacidade para dar consentimento consciente, livre e esclarecido, sendo este parecer obrigatório caso a diretiva antecipada de vontade conste de documento escrito assinado perante funcionário do Registo Nacional do Testamento Vital.

4 – As diretivas antecipadas de vontade em matéria de cuidados de saúde mental não são observadas quando se verifique que da sua observância resultaria perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais de terceiros, nos termos da presente lei.

Artigo 11.º

Medidas coercivas

1 – Na prestação de cuidados de saúde mental, as medidas coercivas, incluindo isolamento e meios de contenção físicos ou químicos, só podem ser usadas na medida do estritamente necessário para prevenir ofensa grave e iminente ao corpo ou à saúde da pessoa carecida desses cuidados ou de terceiro.

2 – As medidas coercivas só podem ser utilizadas como último recurso e por um período limitado à sua estrita necessidade.

3 – O recurso a medidas coercivas deve ser específico e expressamente prescrito por um médico ou levado imediatamente ao seu conhecimento para apreciação e aprovação, em caso de urgência ou de perigo na demora.

4 – É imediata e obrigatoriamente inscrita no processo clínico a informação sobre a natureza das medidas coercivas utilizadas, os fundamentos da sua utilização e a duração das mesmas.

5 – As medidas coercivas são aplicadas por quem esteja treinado para o efeito e implicam uma monitorização clínica contínua, registada no processo clínico com intervalos regulares, de modo a salvaguardar a segurança da pessoa.

Artigo 12.º

Eletroconvulsivoterapia e estimulação magnética transcraniana

1 – Em tratamento involuntário, judicialmente decidido nos termos do artigo 23.º, apenas pode haver recurso a eletroconvulsivoterapia ou a estimulação magnética transcraniana quando estas técnicas sejam medicamente prescritas, se revelem a melhor alternativa terapêutica e a prescrição seja confirmada por dois médicos psiquiatras além do médico prescritor.

2 – É imediata e obrigatoriamente inscrita no processo clínico a informação sobre o uso das técnicas mencionadas no número anterior e os respetivos fundamentos.

SECÇÃO III

Gestão do património

Artigo 13.º

Gestão do património

1 – Quando uma pessoa, sem para tal estar autorizada, assumir a gestão do património de quem tem necessidade de cuidados de saúde mental, que se encontre nas circunstâncias previstas no artigo 138.º do Código Civil e não lhe tenha sido decretada medida de acompanhamento que abranja este âmbito, aplica-se, com as necessárias adaptações, o regime da gestão de negócios.

2 – O gestor de negócios dá conhecimento ao Ministério Público da assunção da gestão, logo que seja possível, considerando-se desta forma cumprido o dever previsto na alínea b) do artigo 465.º do Código Civil.

3 – Incumprimento do dever estabelecido no número anterior por gestor de negócios que seja proprietário, gestor ou funcionário de entidade que administre ou preste cuidados ao dono do negócio determina a inversão do ónus da prova da culpa, para efeitos do artigo 466.º do Código Civil.

4 – Sem prejuízo do disposto no n.º 2, quando o Ministério Público tiver conhecimento da gestão, pode requerer ao gestor que o informe acerca da mesma, bem como do estado e condição do dono do negócio e dos respetivos bens.

5 – Para efeitos das alíneas c) e d) do artigo 465.º do Código Civil, as contas e restantes informações devem ser prestadas ao Ministério Público.

CAPÍTULO IV

Tratamento involuntário

SECÇÃO I

Processo comum

Artigo 14.º

Finalidade do tratamento involuntário

O tratamento involuntário é orientado para a recuperação integral da pessoa, mediante intervenção terapêutica e reabilitação psicossocial.

Artigo 15.º

Pressupostos e princípios gerais

1 – São pressupostos cumulativos do tratamento involuntário:

a) A existência de doença mental;

b) A recusa do tratamento medicamente prescrito, necessário para prevenir ou eliminar o perigo previsto na alínea seguinte;

c) A existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais:

i) De terceiros, em razão da doença mental e da recusa de tratamento; ou

ii) Do próprio, em razão da doença mental e da recusa de tratamento, quando a pessoa não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento;

d) A finalidade do tratamento, conforme previsto no artigo anterior.

2 – O tratamento involuntário só pode ter lugar se for:

a) A única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito;

b) Adequado para prevenir ou eliminar uma das situações de perigo previstas na alínea c) do número anterior; e

c) Proporcional à gravidade da doença mental, ao grau do perigo e à relevância do bem jurídico.

3 – O tratamento involuntário tem lugar em ambulatório, assegurado por equipas comunitárias de saúde mental, exceto se o internamento for a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, cessando logo que o tratamento possa ser retomado em ambulatório.

4 – As restrições aos direitos, vontade e preferências das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental decorrentes do tratamento involuntário são as estritamente necessárias e adequadas à efetividade do tratamento, à segurança e à normalidade do funcionamento da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental, nos termos do respetivo regulamento interno.

Artigo 16.º

Legitimidade

1 – Têm legitimidade para requerer o tratamento involuntário:

a) O representante legal do menor;

b) O acompanhante do maior, no âmbito das suas atribuições;

c) Qualquer pessoa com legitimidade para requerer o acompanhamento de maior;

d) As autoridades de saúde;

e) O Ministério Público;

f) O responsável clínico da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental ou do estabelecimento de internamento, conforme os casos, quando no decurso do internamento voluntário se verifique uma das situações de perigo previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo anterior.

2 – O médico que, no exercício das suas funções, conclua pela verificação de uma das situações de perigo previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo anterior, pode comunicá-la à autoridade de saúde competente para o efeito previsto no n.º 2 do artigo seguinte.

Artigo 17.º

Requerimento para tratamento involuntário

1 – O requerimento para tratamento involuntário, é formulado por escrito, sem quaisquer formalidades especiais, e dirigido ao tribunal competente, devendo conter a descrição dos factos que fundamentam a pretensão do requerente e, sempre que possível, ser instruído com elementos que possam contribuir para a decisão do juiz, nomeadamente relatórios clínico-psiquiátricos e psicossociais.

2 – O Ministério Público e as autoridades de saúde competentes devem requerer o tratamento involuntário sempre que tomem conhecimento de uma das situações de perigo previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º

Artigo 18.º

Termos subsequentes

1 – Recebido o requerimento, o juiz notifica o requerido, informando-o dos direitos e deveres processuais que lhe assistem, e nomeia-lhe um defensor, cuja intervenção cessa se ele constituir mandatário.

2 – O defensor ou o mandatário constituído e o familiar mais próximo do requerido que com ele conviva ou a pessoa que viva com o requerido em condições análogas às dos cônjuges são notificados para requerer o que tiverem por conveniente no prazo de cinco dias.

3 – Para os mesmos efeitos, e em igual prazo, o processo vai com vista ao Ministério Público.

Artigo 19.º

Atos instrutórios

O juiz, oficiosamente ou a requerimento, determina a realização das diligências que se lhe afigurem necessárias e, obrigatoriamente, a avaliação clínico-psiquiátrica do requerido, sendo este notificado para o efeito.

Artigo 20.º

Avaliação clínico-psiquiátrica

1 – A avaliação clínico-psiquiátrica é deferida ao serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência do requerido, podendo ser deferida, excecionalmente e mediante fundamentação, ao serviço do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I. P., da respetiva circunscrição.

2 – A avaliação clínico-psiquiátrica é realizada, no prazo de 15 dias, por dois psiquiatras, com a colaboração de outros profissionais da equipa multidisciplinar do serviço de saúde mental, no serviço ou no domicílio do requerido.

3 – O juiz ordena a emissão de mandado de condução quando tal seja necessário para assegurar a presença do requerido na data designada para a avaliação clínico-psiquiátrica e se conclua que esta não pode ter lugar no domicílio do requerido.

4 – O relatório de avaliação clínico-psiquiátrica contém, obrigatoriamente, o juízo técnico-científico inerente à avaliação, bem como a descrição dos factos que, para prevenir ou eliminar uma das situações de perigo previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, fundamentam:

a) A recusa do tratamento necessário;

b) A necessidade de tratamento involuntário;

c) A insuficiência do tratamento involuntário em ambulatório.

5 – O serviço referido no n.º 1 remete o relatório ao tribunal no prazo de sete dias.

6 – O juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica fica subtraído da livre apreciação do juiz.

Artigo 21.º

Atos preparatórios da sessão conjunta

1 – Recebido o relatório da avaliação clínico-psiquiátrica, o juiz designa data para a sessão conjunta, sendo notificados o requerido, quem tenha sido indicada, pelo requerido, como pessoa de confiança, o defensor ou mandatário constituído, o requerente, o Ministério Público e um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica.

2 – O juiz pode convocar para a sessão quaisquer outras pessoas cuja audição considere oportuna, nomeadamente o psiquiatra assistente e profissionais do serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência do requerido, devendo ser-lhes comunicado o dia, a hora e o local da realização da sessão conjunta.

3 – Se houver discordância entre os psiquiatras, cada um apresenta o seu relatório, podendo o juiz determinar que seja renovada a avaliação clínico-psiquiátrica a cargo de outros psiquiatras, nos termos do artigo anterior.

Artigo 22.º

Sessão conjunta

1 – Na sessão conjunta é obrigatória a presença do defensor ou mandatário constituído e do Ministério Público.

2 – Sem prejuízo do número anterior, as pessoas notificadas e convocadas para a sessão conjunta podem ser ouvidas por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvidos a partir do seu local de trabalho o psiquiatra subscritor do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica e os profissionais do serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência do requerido.

3 – Após audição das pessoas notificadas e convocadas, o juiz dá a palavra para alegações sumárias ao defensor ou mandatário do requerente e ao Ministério Público e profere decisão de imediato ou no prazo de cinco dias, se o procedimento revestir complexidade.

4 – Se o requerido aceitar o tratamento e não houver razões para duvidar da aceitação, depois de ouvido para o efeito um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou o psiquiatra assistente, o juiz toma as providências necessárias à apresentação daquele no serviço de saúde mental mais próximo e determina o arquivamento do processo.

Artigo 23.º

Decisão

1 – A decisão sobre o tratamento involuntário é sempre fundamentada.

2 – Sob pena de nulidade, a decisão:

a) Identifica a pessoa a submeter a tratamento involuntário;

b) Indica as razões do tratamento involuntário, por referência ao disposto no artigo 15.º;

c) Especifica se o tratamento involuntário tem lugar em ambulatório ou em internamento;

d) Indica as razões da opção pelo tratamento involuntário em internamento, bem como as razões da não opção pelo tratamento em ambulatório.

3 – O juiz determina:

a) O tratamento ambulatório do requerido no serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência; ou

b) A apresentação do requerido no serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência, para efeitos de internamento imediato.

4 – A decisão é notificada ao Ministério Público, ao requerido, ao defensor ou mandatário constituído, ao requerente e ao serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência do requerido.

5 – A leitura da decisão equivale à notificação dos presentes.

Artigo 24.º

Cumprimento da decisão de internamento

1 – O juiz emite mandado de condução com identificação da pessoa a internar, o qual é cumprido, sempre que possível, pelo serviço local ou regional de saúde mental responsável pelo internamento, que, quando necessário, solicita a coadjuvação das forças de segurança.

2 – Não sendo possível o cumprimento nos termos do número anterior, o mandado de condução pode ser cumprido pelas forças de segurança, que, quando necessário, solicitam o apoio do serviço de saúde mental responsável pelo internamento.

3 – O local do internamento é comunicado ao familiar mais próximo que com o internado conviva, à pessoa que com ele viva em condições análogas às dos cônjuges ou à pessoa que tenha sido por ele indicada como pessoa de confiança.

Artigo 25.º

Revisão da decisão

1 – Se for invocada a existência de causa justificativa da cessação do tratamento involuntário, o tribunal competente aprecia a questão a todo o tempo.

2 – A revisão da decisão é obrigatória, independentemente de requerimento, decorridos dois meses sobre o início do tratamento ou sobre a decisão que o tiver mantido.

3 – Tem legitimidade para requerer a revisão da decisão:

a) A pessoa em tratamento involuntário, por si ou em conjunto com a pessoa de confiança;

b) O defensor ou mandatário constituído;

c) As pessoas referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 16.º;

d) O Ministério Público;

e) O responsável clínico pelo serviço local ou regional de saúde mental.

4 – Para o efeito previsto no n.º 2, o serviço de saúde mental envia ao tribunal, até 10 dias antes da data calculada para a revisão obrigatória, um relatório de avaliação clínico-psiquiátrica elaborado por dois psiquiatras, com a colaboração de outros profissionais do respetivo serviço.

5 – A revisão da decisão tem lugar com audição do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento.

6 – É correspondentemente aplicável à audição prevista no número anterior o disposto no n.º 2 do artigo 22.º, e à decisão de revisão o disposto no artigo 23.º

Artigo 26.º

Cessação do tratamento involuntário

1 – O tratamento involuntário cessa logo que cessem os pressupostos que o justificaram.

2 – A cessação ocorre por alta dada pelo diretor clínico do serviço de saúde mental, fundamentada em relatório de avaliação clínico-psiquiátrica do serviço, ou por decisão judicial.

3 – A alta é imediatamente comunicada ao tribunal competente.

Artigo 27.º

Substituição do internamento

1 – O tratamento involuntário em internamento é substituído por tratamento em ambulatório logo que aquele deixe de ser a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, sem prejuízo do disposto nos artigos 25.º e 26.º

2 – A substituição é comunicada ao tribunal competente.

3 – O tratamento involuntário em internamento é retomado sempre que seja de concluir que é a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, designadamente por terem deixado de ser cumpridas as condições estabelecidas para o tratamento em ambulatório.

4 – No caso previsto no número anterior, o psiquiatra responsável pelo tratamento comunica a alteração ao tribunal competente, sendo correspondentemente aplicáveis os n.os 4, 5 e 6 do artigo 25.º

5 – Sempre que necessário, o serviço de saúde mental solicita ao tribunal competente a emissão de mandados de condução, a cumprir pelas forças de segurança.

6 – O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável ao internamento de urgência até à decisão final prevista no artigo 33.º

SECÇÃO II

Internamento de urgência

Artigo 28.º

Pressupostos

Quando o perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais do próprio ou de terceiros seja iminente, nomeadamente por deterioração aguda do estado da pessoa com doença mental, pode haver lugar ao tratamento involuntário em internamento, nos termos dos artigos seguintes, verificado o disposto no n.º 1 do artigo 15.º

Artigo 29.º

Condução do internando

1 – Verificados os pressupostos do artigo anterior, os elementos da Guarda Nacional Republicana ou da Polícia de Segurança Pública a quem a lei reconheça a qualidade de autoridade de polícia ou as autoridades de saúde previstas na lei podem determinar, oficiosamente ou a requerimento, através de mandado, que a pessoa seja conduzida a serviço de urgência hospitalar com valência de psiquiatria.

2 – O mandado contém a assinatura da autoridade competente, a identificação da pessoa a conduzir e a indicação das razões que o fundamentam e é cumprido pelas forças de segurança, com o acompanhamento, sempre que possível, do serviço de urgência hospitalar.

3 – Quando, pela situação de urgência e de perigo na demora, não seja possível a emissão prévia de mandado, qualquer elemento de uma força de segurança conduz imediatamente o internando ao serviço de urgência hospitalar com valência de psiquiatria.

4 – Na situação descrita no número anterior, o agente policial lavra auto em que discrimina os factos, bem como as circunstâncias de tempo e de lugar em que a mesma foi efetuada.

5 – A condução do internando é comunicada de imediato ao Ministério Público.

Artigo 30.º

Apresentação do internando

O internando é apresentado de imediato no serviço de urgência hospitalar com valência de psiquiatria mais próximo do local em que se iniciou a condução, onde é submetido a avaliação clínico-psiquiátrica com registo clínico e lhe é prestada a assistência médica necessária.

Artigo 31.º

Comunicação da avaliação clínico-psiquiátrica em serviço de urgência hospitalar

1 – Quando decorra da avaliação clínico-psiquiátrica a necessidade de internamento e o internando a ele se oponha, o serviço de urgência hospitalar comunica de imediato a admissão daquele ao tribunal judicial competente, com cópia do mandado e do relatório da avaliação.

2 – Quando a avaliação clínico-psiquiátrica não confirme a necessidade de internamento:

a) A entidade que tiver conduzido a pessoa restitui-a de imediato à liberdade, remetendo o expediente ao Ministério Público;

b) O serviço de urgência hospitalar remete a avaliação clínico-psiquiátrica ao Ministério Público.

3 – O disposto no n.º 1 é aplicável, com as devidas adaptações, quando, em serviço de urgência ou no decurso de internamento voluntário em estabelecimento ou serviço do Serviço Nacional de Saúde, se conclua pela necessidade de internamento e o internando a ele se oponha.

Artigo 32.º

Confirmação judicial

1 – Recebida a comunicação referida no n.º 1 do artigo anterior, o juiz nomeia defensor ao internando e dá vista nos autos ao Ministério Público para pronúncia sobre os pressupostos do internamento de urgência.

2 – Realizadas as diligências que considere necessárias, o juiz profere decisão de manutenção ou não do internamento, no prazo de 48 horas a contar da privação da liberdade, fundamentando a decisão.

3 – Sob pena de nulidade, a decisão:

a) Identifica a pessoa a submeter a internamento involuntário;

b) Indica as razões do internamento involuntário, por referência ao disposto no artigo 28.º

4 – A decisão de manutenção do internamento é comunicada, com todos os elementos que a fundamentam, ao tribunal competente.

5 – A decisão é igualmente comunicada ao internado e ao familiar mais próximo que com ele conviva ou à pessoa que viva com o internado em condições análogas às dos cônjuges, bem como ao médico assistente, sendo aquele informado dos direitos e deveres processuais que lhe assistem.

Artigo 33.º

Decisão final

1 – Recebida a comunicação a que se refere o n.º 4 do artigo anterior, o juiz dá início ao processo de tratamento involuntário, ordenando que, no prazo de cinco dias, seja feita nova avaliação clínico-psiquiátrica, a cargo de dois psiquiatras, distintos dos que tenham procedido à anterior, com a colaboração de outros profissionais da equipa multidisciplinar do serviço de saúde mental.

2 – Nos casos previstos no número anterior é aplicável o disposto no artigo 18.º, com as necessárias adaptações.

3 – Recebido o relatório da avaliação clínico-psiquiátrica e realizadas as demais diligências necessárias, é designada data para a sessão conjunta, à qual é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 21.º a 24.º

4 – Se a decisão final for de tratamento involuntário é aplicável o disposto nos artigos 25.º a 27.º, com as necessárias adaptações.

SECÇÃO III

Disposições processuais comuns

Artigo 34.º

Regras de competência

1 – Sem prejuízo dos números seguintes, para efeitos do disposto no presente capítulo, é competente:

a) O juízo local criminal com competência na área de residência do requerido, ou o juízo de competência genérica, se a área referida não for abrangida por juízo local criminal;

b) O tribunal de execução das penas quando o requerido estiver em prisão ou internamento preventivos ou em cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade.

2 – Nos casos previstos no n.º 1 do artigo 31.º, é competente o juízo local criminal com competência na área do serviço de urgência hospitalar com valência de psiquiatria, ou o juízo de competência genérica, se a área referida não for abrangida por juízo local criminal.

3 – Para efeitos do disposto no n.º 5 do artigo 29.º e nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 31.º, as comunicações e as remessas são feitas ao Ministério Público com competência na área em que se iniciou a condução da pessoa.

Artigo 35.º

Recorribilidade da decisão

1 – Da decisão tomada nos termos dos artigos 23.º e 25.º, do n.º 4 do artigo 27.º, do n.º 2 do artigo 32.º, e do n.º 3 do artigo 33.º cabe recurso para o Tribunal da Relação competente.

2 – Tem legitimidade para recorrer:

a) A pessoa cujo tratamento involuntário foi decretado ou confirmado, por si ou em conjunto com a pessoa de confiança;

b) O defensor ou mandatário constituído;

c) Quem tiver legitimidade para requerer o internamento involuntário nos termos do artigo 16.º

3 – Os recursos previstos no presente capítulo têm efeito meramente devolutivo e são decididos no prazo máximo de 30 dias.

Artigo 36.º

Natureza do processo

Os processos previstos no presente capítulo têm natureza urgente.

Artigo 37.º

Legislação subsidiária

Nos casos omissos aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal.

SECÇÃO IV

Comissão para o acompanhamento da execução do regime jurídico do tratamento involuntário

Artigo 38.º

Criação

É criada a comissão para o acompanhamento da execução do regime jurídico do tratamento involuntário, adiante designada por comissão.

Artigo 39.º

Competências

Compete especialmente à comissão:

a) Visitar as unidades de internamento dos serviços locais ou regionais de saúde mental e comunicar diretamente com as pessoas em tratamento involuntário;

b) Solicitar ou remeter a quaisquer entidades administrativas ou judiciárias informações sobre a situação das pessoas em tratamento involuntário;

c) Receber e apreciar as reclamações das pessoas em tratamento involuntário ou das pessoas com legitimidade para o requerer;

d) Solicitar ao Ministério Público junto do tribunal competente os procedimentos judiciais julgados adequados à correção de quaisquer situações de violação da lei que verifique no exercício das suas funções;

e) Recolher e tratar a informação relativa à aplicação do presente capítulo;

f) Emitir recomendações às entidades com intervenção na execução do regime do tratamento involuntário;

g) Propor ao Governo as medidas que julgue necessárias à execução da presente lei.

Artigo 40.º

Composição

1 – A comissão é constituída por três psiquiatras, um magistrado judicial, um magistrado do Ministério Público, um psicólogo clínico, um enfermeiro especialista em enfermagem de saúde mental e psiquiátrica, um técnico de serviço social, um representante das associações de utentes e um representante das associações de familiares, nomeados por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da justiça e da saúde.

2 – O mandato dos membros da comissão tem a duração de três anos, sendo que pelo menos dois dos seus membros transitam da comissão cessante para aquela que é nomeada.

3 – Os membros da comissão não auferem qualquer tipo de remuneração ou senhas de presença, sem prejuízo do pagamento de ajudas de custo e deslocações a que tenham direito, nos termos legais.

Artigo 41.º

Sede e serviços administrativos

Os serviços de apoio técnico e administrativo à atividade da comissão, bem como a respetiva sede, são definidos por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da justiça e da saúde.

Artigo 42.º

Cooperação

1 – Para os fins previstos na alínea e) do artigo 39.º, os tribunais remetem à comissão cópia das decisões previstas no presente capítulo.

2 – É dever das entidades públicas e privadas dispensar à comissão toda a colaboração necessária ao exercício das suas competências.

Artigo 43.º

Base de dados

A comissão promove a organização de uma base de dados informática anonimizada relativa à aplicação do presente capítulo, à qual acedem entidades públicas ou privadas que nisso tenham interesse legítimo.

Artigo 44.º

Relatório

A comissão elabora anualmente um relatório sobre as atividades desenvolvidas no desempenho das suas competências, o qual deve ser apresentado ao Governo até 31 de março de cada ano.

CAPÍTULO V

Disposições complementares

Artigo 45.º

Habeas corpus em virtude de privação ilegal da liberdade

1 – Quem seja privado da liberdade pode requerer ao tribunal da área onde se encontrar a sua imediata libertação, com qualquer dos seguintes fundamentos:

a) Estar excedido o prazo previsto no n.º 2 do artigo 32.º;

b) Ter sido a privação da liberdade efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

c) Ser a privação da liberdade motivada fora das condições ou dos casos previstos na presente lei.

2 – O requerimento previsto no número anterior pode igualmente ser apresentado por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3 – Recebido o requerimento, o juiz, se o não considerar manifestamente infundado, ordena, se necessário por via telefónica, a apresentação imediata da pessoa privada da liberdade.

4 – Juntamente com a ordem referida no número anterior, o juiz manda notificar a entidade que tiver a pessoa à sua guarda, ou quem puder representá-la, para se apresentar no mesmo ato munida das informações e esclarecimentos necessários à decisão sobre o requerimento.

5 – O juiz decide, ouvidos o Ministério Público e o defensor nomeado ou o mandatário constituído para o efeito.

Artigo 46.º

Responsabilidade por violação da lei

A violação do disposto na presente lei faz incorrer os seus autores em responsabilidade civil, penal e disciplinar, nos termos previstos na lei.

CAPÍTULO VI

Alterações legislativas

Artigo 47.º

Alteração ao Código da Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade

Os artigos 128.º, 138.º e 171.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade passam a ter a seguinte redação:

«Artigo 128.º

[…]

1 – […]

2 – […]

3 – […]

4 – […]

5 – […]

6 – Ao inimputável e ao imputável internado em estabelecimento destinado a inimputáveis é aplicável o disposto na Lei da Saúde Mental relativamente aos direitos das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental.

Artigo 138.º

[…]

1 – […]

2 – […]

3 – […]

4 – […]

a) […]

b) […]

c) […]

d) […]

e) […]

f) […]

g) […]

h) […]

i) […]

j) […]

l) […]

m) Rever a medida de segurança de internamento de inimputáveis;

n) […]

o) […]

p) […]

q) […]

r) […]

s) […]

t) […]

u) […]

v) […]

x) […]

z) […]

aa) […]

bb) Decidir sobre o tratamento involuntário do condenado com necessidade de cuidados de saúde mental, nos termos da lei.

Artigo 171.º

[…]

1 – Cabe recurso da decisão que determine, recuse ou mantenha o internamento e da que decrete a respetiva cessação.

2 – […]

3 – […]

4 – […]»

Artigo 48.º

Alteração à Lei n.º 25/2012, de 16 de julho

O artigo 2.º da Lei n.º 25/2012, de 16 de julho, passa a ter a seguinte redação:

«Artigo 2.º

[…]

1 – As diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, são o documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz manifesta antecipadamente a sua vontade consciente, livre e esclarecida no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente.

2 – […]»

Artigo 49.º

Alteração à Lei da Organização do Sistema Judiciário

O artigo 114.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário passa a ter a seguinte redação:

«Artigo 114.º

[…]

1 – […]

2 – […]

3 – […]

a) […]

b) […]

c) […]

d) […]

e) […]

f) […]

g) […]

h) […]

i) […]

j) […]

k) […]

l) Rever a medida de segurança de internamento de inimputáveis;

m) […]

n) […]

o) […]

p) […]

q) […]

r) […]

s) […]

t) […]

u) […]

v) […

w) […];

x) […]

y) Decidir sobre o tratamento involuntário do condenado com necessidade de cuidados de saúde mental, nos termos da lei.»

Artigo 50.º

Alteração ao Código Penal

Os artigos 93.º, 96.º e 142.º do Código Penal passam a ter a seguinte redação:

«Artigo 93.º

[…]

1 – […]

2 – A apreciação é obrigatória, independentemente de requerimento, decorrido um ano sobre o início do internamento ou sobre a decisão que o tiver mantido.

3 – […]

Artigo 96.º

[…]

1 – Não pode iniciar-se a execução da medida de segurança de internamento, decorrido um ano ou mais sobre a decisão que a tiver decretado, sem que seja apreciada a subsistência dos pressupostos que fundamentaram a sua aplicação.

2 – […].

Artigo 142.º

[…]

1 – […]

2 – […]

3 – […]

4 – […]

5 – No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos, o consentimento é prestado pelo representante legal.

6 – Se a mulher grávida menor de 16 anos tiver o discernimento necessário para se opor à decisão do representante legal, o consentimento é judicialmente suprido.

7 – No caso de a mulher grávida não ter capacidade para consentir, o consentimento é prestado, sendo menor, pelo seu representante legal e, sendo maior, por decisão do tribunal.

8 – (Anterior n.º 6.)

9 – (Anterior n.º 7.)»

Artigo 51.º

Alteração ao Regulamento das Custas Processuais

O artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais passa a ter a seguinte redação:

«Artigo 4.º

[…]

1 – […]

2 – […]

a) […]

b) […]

c) […]

d) […]

e) Os processos de tratamento involuntário de pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental;

f) […]

g) […]

h) […]

3 – […]

4 – […]

5 – […]

6 – […]

7 – […]»

Artigo 52.º

Alteração ao Decreto-Lei n.º 70/2019, de 24 de maio

O artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 70/2019, de 24 de maio, passa a ter a seguinte redação:

«Artigo 9.º

[…]

1 – […]

2 – Em especial, são garantidos ao internado os direitos previstos no artigo 7.º do Código, bem como os direitos legalmente reconhecidos às pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental.

3 – O internado tem os deveres previstos no artigo 8.º do Código, bem como os deveres legalmente previstos para as pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental.»

Artigo 53.º

Alteração ao Decreto-Lei n.º 113/2021, de 14 de dezembro

O artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 113/2021, de 14 de dezembro, passa a ter a seguinte redação:

«Artigo 7.º

[…]

1 – […]

2 – […]

a) […]

b) […]

c) […]

d) […]

e) […]

f) […]

g) […]

h) […]

i) […]

j) […]

k) […]

l) […]

m) […]

n) […]

o) […]

p) […]

q) […]

r) […]

s) […]

t) […]

u) […]

v) […]

w) […]

x) […]

y) […]

z) […]

aa) O presidente da comissão para o acompanhamento da execução do regime jurídico do tratamento involuntário.

3 – […]»

CAPÍTULO VII

Disposições finais

Artigo 54.º

Norma revogatória

São revogados:

a) A Lei n.º 36/98, de 24 de julho, que aprova a Lei de Saúde Mental;

b) O artigo 162.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade;

c) A alínea b) do artigo 4.º da Lei n.º 25/2012, de 16 de julho;

d) O artigo 148.º do Código Civil;

e) O n.º 3 do artigo 92.º do Código Penal;

f) A alínea e) do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 137/2019, de 13 de setembro.

Artigo 55.º

Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor 30 dias após a sua publicação.

Aprovada em 26 de maio de 2023.

O Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva.

Promulgada em 10 de julho de 2023.

Publique-se.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Referendada em 14 de julho de 2023.

O Primeiro-Ministro, António Luís Santos da Costa.»


No dia 20 de agosto entrará em vigor a nova Lei de Saúde Mental, aprovada pela Lei n.º 35/2023, de 21 de julho

O diploma, resultante de uma proposta elaborada por uma comissão de especialistas e apresentada pelo Governo à Assembleia da República, vem substituir a Lei de Saúde Mental de 1998, cuja revisão se justificava após mais de vinte anos de vigência, considerando, por um lado, os avanços registados, nesta área, a nível clínico, e, por outro, os compromissos assumidos por Portugal, relativamente a esta matéria, no âmbito da Organização Mundial de Saúde, do Conselho da Europa, da União Europeia e de outras instâncias internacionais. A Lei de Saúde Mental dispõe sobre a definição, os fundamentos e os objetivos da política de saúde mental, consagra os direitos e deveres das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental, regula as restrições dos seus direitos e estabelece as garantias de proteção da liberdade e da autonomia destas pessoas. O diploma reflete o quadro valorativo à luz do qual devem ser entendidas todas as abordagens terapêuticas neste domínio, baseadas na dignidade da pessoa humana.

O que muda

Com vista a assegurar a efetividade dos direitos de que é titular, prevê-se que a pessoa com necessidade de cuidados de saúde mental seja apoiada ou representada, no exercício dos mesmos, consoante os casos, pelo acompanhante (ao abrigo do regime do maior acompanhado), pelo procurador de cuidados de saúde, pelo mandatário, pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, a tutela ou a quem tenha sido confiada.

Nesse contexto, prevê-se na nova lei a figura, intencionalmente informal, da pessoa da confiança — pessoa escolhida por quem tem necessidade de cuidados de saúde mental e por si expressamente indicada para, com a sua concordância, lhe prestar apoio no exercício dos seus direitos. Adicionalmente, o respeito pelas pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental implica ver respeitadas a sua vontade e preferências, que podem ser expressas antecipadamente sob a forma de diretivas antecipadas de vontade.

Outra mudança prende-se com os requisitos e condições para o tratamento involuntário, o qual substitui o internamento compulsivo. Nos termos da nova Lei de Saúde Mental, a sujeição de cidadãos com doença mental a tratamento involuntário pode ser determinada em caso de recusa do tratamento medicamente prescrito, necessário para prevenir ou eliminar um perigo para bens jurídicos do próprio ou de terceiros.

O tratamento involuntário só pode ter lugar se for a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, devendo ser adequado a prevenir ou eliminar uma das situações de perigo referidas e ser proporcional à gravidade da doença mental, ao grau do perigo e à relevância do bem jurídico.

O tratamento tem finalidade terapêutica, sendo orientado para a recuperação integral da pessoa, mediante intervenção terapêutica e psicossocial, visando a (re)capacitação, o (re)empoderamento, a reposição da autonomia da pessoa que recusa o tratamento que lhe está medicamente indicado, como forma de evitar consequências irreversíveis para a sua saúde mental, bem como a de prevenir a prática de crimes. Em coerência com a finalidade que lhe é apontada, a pessoa em tratamento involuntário participa, na medida da sua capacidade, na elaboração e execução do respetivo plano de cuidados e é ativamente envolvida nas decisões sobre o desenvolvimento do processo terapêutico.

A lei estabelece uma preferência pelo tratamento involuntário em ambulatório, assegurado pelos serviços locais de saúde mental e/ou equipas comunitárias de saúde mental, exceto se o internamento for a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, cessando logo que o tratamento possa ser retomado em ambulatório.

A decisão de determinar o tratamento involuntário é uma decisão judicial, necessariamente fundamentada e baseada em avaliação clínico-psiquiátrica.

Impacto no sistema de saúde forense

A nova Lei de Saúde Mental procede também à revogação do n.º 3 do artigo 92.º do Código Penal, que, até agora, permitia, em certos casos, a prorrogação sucessiva das medidas de segurança de internamento de cidadãos inimputáveis. A subsistência de tal regime era há muito questionada, por permitir que as medidas de internamento pudessem ter, na prática, duração ilimitada ou mesmo perpétua.

Assim, com a entrada em vigor da nova lei, cessarão as medidas de segurança de internamento que, à data, já tenham ultrapassado a duração máxima da pena prevista para o tipo de crime. De acordo com o levantamento elaborado pelos serviços de internamento, estima-se que 46 pessoas estejam nessa situação na data da entrada em vigor do diploma. A cessação da medida depende, contudo, de determinação judicial.

Com vista a preparar a entrada em vigor do novo regime, o Governo estabeleceu uma articulação estreita entre as áreas governativas da Justiça, da Segurança Social e da Saúde, definindo uma metodologia através da qual foi feito o levantamento de todos os casos em relação aos quais era previsível a cessação da medida, caracterizando-se a situação clínica e social de cada um desses cidadãos através de uma abordagem multidisciplinar, congregando as informações da área da Reinserção Social, da Saúde Mental e da Segurança Social.

Com base nessa caracterização, procurou-se definir a resposta mais adequada às capacidades e necessidades de cada um dos cidadãos. As respostas podem passar pela reinserção em meio familiar, pela instalação em estruturas residenciais, seja para pessoas idosas, seja para pessoas com deficiência, diferentes tipologias de respostas habitacionais, pela colocação em instituições de saúde ou em unidades da rede de cuidados continuados integrados de saúde mental.

No caso das pessoas que necessitem de manter acompanhamento de saúde mental, este será sempre assegurado pelos serviços locais de saúde mental da área da residência. Nos casos em que, devido à doença mental e à recusa de tratamento, a pessoa possa representar um perigo para bens jurídicos, próprios ou alheios, poderá ser decretado por um tribunal uma medida de tratamento involuntário, incluindo internamento involuntário, ao abrigo da Lei de Saúde Mental, nos termos acima descritos.

No caso de pessoas que, por razões de idade, saúde, deficiência ou pelo seu comportamento se encontrem impossibilitadas de exercer pessoal, plena e conscientemente os seus direitos, podem beneficiar do Regime do Maior Acompanhado, aprovado pela Lei nº 49/2018 de 14 de agosto, que permite aos tribunais decretar as necessárias medidas de acompanhamento, nomeadamente designar pessoa ou pessoas encarregadas do acompanhamento, ou seja, incumbidas de as ajudar ou representar na tomada de decisões de natureza pessoal ou patrimonial.

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