- Lei n.º 38/2018 – Diário da República n.º 151/2018, Série I de 2018-08-07
Assembleia da República
Direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa
«Lei n.º 38/2018
de 7 de agosto
Direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa
A Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, o seguinte:
CAPÍTULO I
Disposições gerais
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa.
Artigo 2.º
Proibição de discriminação
1 – Todas as pessoas são livres e iguais em dignidade e direitos, sendo proibida qualquer discriminação, direta ou indireta, em função do exercício do direito à identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais.
2 – As entidades privadas cumprem a presente lei e as entidades públicas garantem o seu cumprimento e promovem, no âmbito das suas competências, as condições necessárias para o exercício efetivo do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais de cada pessoa.
Artigo 3.º
Autodeterminação da identidade de género e expressão de género
1 – O exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género de uma pessoa é assegurado, designadamente, mediante o livre desenvolvimento da respetiva personalidade de acordo com a sua identidade e expressão de género.
2 – Quando, para a prática de um determinado ato ou procedimento, se torne necessário indicar dados de um documento de identificação que não corresponda à identidade de género de uma pessoa, esta ou os seus representantes legais podem solicitar que essa indicação passe a ser realizada mediante a inscrição das iniciais do nome próprio que consta no documento de identificação, precedido do nome próprio adotado face à identidade de género manifestada, seguido do apelido completo e do número do documento de identificação.
Artigo 4.º
Proteção das características sexuais
Todas as pessoas têm direito a manter as características sexuais primárias e secundárias.
Artigo 5.º
Modificações ao nível do corpo e das características sexuais da pessoa menor intersexo
Salvo em situações de comprovado risco para a sua saúde, os tratamentos e as intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de outra natureza que impliquem modificações ao nível do corpo e das características sexuais da pessoa menor intersexo não devem ser realizados até ao momento em que se manifeste a sua identidade de género.
CAPÍTULO II
Reconhecimento jurídico da identidade de género
Artigo 6.º
Procedimento
1 – O reconhecimento jurídico da identidade de género pressupõe a abertura de um procedimento de mudança da menção do sexo no registo civil e da consequente alteração de nome próprio, mediante requerimento.
2 – O procedimento referido no número anterior tem natureza confidencial, exceto a pedido da própria pessoa, dos seus herdeiros, das autoridades judiciais ou policiais para efeitos de investigação ou instrução criminal, ou mediante decisão judicial.
3 – A mudança da menção do sexo no registo civil e a consequente alteração de nome próprio realizadas nos termos da presente lei só podem ser objeto de novo requerimento mediante autorização judicial.
4 – A decisão final sobre a identidade de género de uma pessoa, proferida por uma autoridade ou tribunal estrangeiro, de acordo com a legislação desse país, é reconhecida nos termos da lei.
Artigo 7.º
Legitimidade
1 – Têm legitimidade para requerer o procedimento de mudança da menção do sexo no registo civil e da consequente alteração de nome próprio as pessoas de nacionalidade portuguesa, maiores de idade e que não se mostrem interditas ou inabilitadas por anomalia psíquica, cuja identidade de género não corresponda ao sexo atribuído à nascença.
2 – As pessoas de nacionalidade portuguesa e com idade compreendida entre os 16 e os 18 anos podem requerer o procedimento de mudança da menção do sexo no registo civil e da consequente alteração de nome próprio, através dos seus representantes legais, devendo o conservador proceder à audição presencial do requerente, por forma a apurar o seu consentimento expresso, livre e esclarecido, mediante relatório por este solicitado a qualquer médico inscrito na Ordem dos Médicos ou psicólogo inscrito na Ordem dos Psicólogos, que ateste exclusivamente a sua capacidade de decisão e vontade informada sem referências a diagnósticos de identidade de género, tendo sempre em consideração os princípios da autonomia progressiva e do superior interesse da criança constantes na Convenção sobre os Direitos da Criança.
3 – A pessoa intersexo pode requerer o procedimento de mudança da menção de sexo no registo civil e da consequente alteração de nome próprio, a partir do momento que se manifeste a respetiva identidade de género.
Artigo 8.º
Requerimento
O procedimento de mudança da menção do sexo no registo civil e da consequente alteração de nome próprio tem início mediante requerimento apresentado em qualquer conservatória do registo civil, com indicação do número de identificação civil e do nome próprio pelo qual a pessoa pretende vir a ser identificada, podendo, desde logo, ser solicitada a realização de novo assento de nascimento, no qual não pode ser feita qualquer menção à alteração do registo.
Artigo 9.º
Decisão
1 – No prazo máximo de oito dias úteis a contar da data de apresentação do requerimento, verificados os requisitos de legitimidade previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 7.º, o conservador realiza o respetivo averbamento, nos termos da alínea o) do n.º 1 do artigo 69.º do Código do Registo Civil e, se for o caso, realiza um novo assento de nascimento, nos termos do n.º 1 do artigo 123.º do mesmo Código.
2 – Nenhuma pessoa pode ser obrigada a fazer prova de que foi submetida a procedimentos médicos, incluindo cirurgia de reatribuição do sexo, esterilização ou terapia hormonal, assim como a tratamentos psicológicos e ou psiquiátricos, como requisito que sirva de base à decisão referida no número anterior.
3 – Da decisão desfavorável à mudança da menção do sexo no registo civil e à consequente alteração de nome próprio ou do não cumprimento dos prazos estabelecidos no presente artigo cabe recurso hierárquico para o presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, I. P., nos termos do Código do Registo Civil.
Artigo 10.º
Efeitos
1 – A mudança da menção do sexo no registo civil e a consequente alteração de nome próprio efetuada nos termos da presente lei não afeta nem altera os direitos constituídos e as obrigações jurídicas assumidas antes do reconhecimento jurídico da identidade de género.
2 – As pessoas que tenham procedido à mudança da menção do sexo no registo civil e à consequente alteração de nome próprio passam, desse modo, a ser reconhecidas nos documentos de identificação, com o nome e sexo neles constantes.
3 – A pessoa que tenha procedido à mudança da menção do sexo no registo civil e à consequente alteração de nome próprio deve dar início às alterações necessárias à atualização dos seus documentos de identificação no prazo máximo de 30 dias a contar do averbamento.
CAPÍTULO III
Medidas de proteção
Artigo 11.º
Saúde
1 – O Estado deve garantir, a quem o solicitar, a existência e o acesso a serviços de referência ou unidades especializadas no Serviço Nacional de Saúde, designadamente para tratamentos e intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de outra natureza, destinadas a fazer corresponder o corpo à sua identidade de género.
2 – A Direção-Geral da Saúde define, no prazo máximo de 270 dias, um modelo de intervenção, através de orientações e normas técnicas, a ser implementado pelos profissionais de saúde no âmbito das questões relacionadas com a identidade de género, expressão de género e características sexuais das pessoas.
Artigo 12.º
Educação e ensino
1 – O Estado deve garantir a adoção de medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas, nomeadamente através do desenvolvimento de:
a) Medidas de prevenção e de combate contra a discriminação em função da identidade de género, expressão de género e das características sexuais;
b) Mecanismos de deteção e intervenção sobre situações de risco que coloquem em perigo o saudável desenvolvimento de crianças e jovens que manifestem uma identidade de género ou expressão de género que não se identifica com o sexo atribuído à nascença;
c) Condições para uma proteção adequada da identidade de género, expressão de género e das características sexuais, contra todas as formas de exclusão social e violência dentro do contexto escolar, assegurando o respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e jovens que realizem transições sociais de identidade e expressão de género;
d) Formação adequada dirigida a docentes e demais profissionais do sistema educativo no âmbito de questões relacionadas com a problemática da identidade de género, expressão de género e da diversidade das características sexuais de crianças e jovens, tendo em vista a sua inclusão como processo de integração socioeducativa.
2 – Os estabelecimentos do sistema educativo, independentemente da sua natureza pública ou privada, devem garantir as condições necessárias para que as crianças e jovens se sintam respeitados de acordo com a identidade de género e expressão de género manifestadas e as suas características sexuais.
3 – Os membros do Governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação adotam, no prazo máximo de 180 dias, as medidas administrativas necessárias para a implementação do disposto no n.º 1.
CAPÍTULO IV
Meios de defesa
Artigo 13.º
Resolução alternativa de litígios
Sem prejuízo do recurso à via judicial, as partes podem submeter os litígios emergentes da presente lei a meios de resolução alternativa de litígios, nos termos da lei.
Artigo 14.º
Responsabilidade
1 – A prática de qualquer ato discriminatório, por ação ou omissão, confere à pessoa lesada o direito a uma indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, a título de responsabilidade civil extracontratual, nos termos do Código Civil.
2 – Na fixação da indemnização, o tribunal deve atender ao grau de violação dos interesses em causa, ao poder económico dos autores do ilícito e às condições da pessoa alvo da prática discriminatória.
Artigo 15.º
Proteção contra atos de retaliação
É nulo o ato de retaliação que corresponda a um tratamento que tenha como propósito lesar ou desfavorecer qualquer pessoa, adotado em razão de reclamação, queixa, denúncia ou ação contra o autor desse ato, em defesa do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais de cada pessoa, nos termos da presente lei.
Artigo 16.º
Direitos processuais das associações e organizações não-governamentais
1 – É reconhecida às associações e organizações não-governamentais, cujo objeto estatutário se destine essencialmente à defesa e promoção do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais de cada pessoa, legitimidade processual para a defesa dos direitos e interesses coletivos e para a defesa coletiva dos direitos e interesses individuais legalmente protegidos das pessoas associadas, bem como para a defesa dos valores protegidos pela presente lei.
2 – A defesa coletiva dos direitos e interesses individuais legalmente protegidos, prevista no número anterior, não pode implicar limitação da autonomia individual das pessoas associadas.
CAPÍTULO V
Disposições transitórias e finais
Artigo 17.º
Norma transitória
A presente lei aplica-se aos procedimentos de mudança da menção do sexo no registo civil e da consequente alteração de nome próprio que se encontram a decorrer à data da sua entrada em vigor.
Artigo 18.º
Norma revogatória
É revogada a Lei n.º 7/2011, de 15 de março, com exceção do seu artigo 5.º
Artigo 19.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no primeiro dia útil seguinte ao da sua publicação.
Aprovada em 12 de julho de 2018.
O Presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues.
Promulgada em 31 de julho de 2018.
Publique-se.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
Referendada em 2 de agosto de 2018.
Pelo Primeiro-Ministro, Augusto Ernesto Santos Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros.»