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As Autarquias Vão Ter as 35 Horas Semanais: Veja o Acórdão do Tribunal Constitucional

ACÓRDÃO Nº 494/2015

Processo n.º 1129/14

Plenário

Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros 

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

 

I- Relatório

  1. O Provedor de Justiça, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição, requereu ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da «norma constante da alínea b) do n.º 3 do artigo 364.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, bem como, consequentemente, da norma constante do n.º 6 do mesmo artigo 364.º da LTFP, na parte aplicável, em ambas as disposições, à outorga pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública dos acordos coletivos de empregador público no âmbito da administração autárquica».

Considera o Provedor de Justiça que as referidas normas violam o princípio da autonomia local acolhido no artigo 6.º, n.º 1, bem como os termos delimitados para a tutela administrativa contidos no artigo 242.º, n.º 1, ambos da Constituição.

 

  1. Após uma parte introdutória relativa à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), o requerimento de declaração de inconstitucionalidade do Provedor de Justiça expõe os seguintes fundamentos:

«(…)

11.º

A esta luz, a norma constante da alínea b) do n.º 3 do artigo 364.º da LTFP estabelece, no segmento aplicável aos acordos coletivos de empregador público na esfera da administração autárquica, a legitimidade, pela parte do empregador público, dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública para, conjuntamente com o órgão autárquico interessado, celebrarem o tipo de acordos coletivos aqui versados.

12.º

Neste horizonte, entendo que a norma em causa viola, no segmento relevante, o princípio da autonomia local consagrado, em sede de “Princípios fundamentais”, no n.º 1 do artigo 6.º da Constituição.

13.º

Isto, porquanto, tendo o legislador, ao abrigo das regras de legitimidade ali contidas, feito obrigatoriamente depender a celebração dos acordos coletivos de empregador público, no âmbito da administração local, da concordância dos referidos membros do Governo, na qualidade de cocontratantes, a ausência dessa anuência acarreta a impossibilidade de outorga do acordo coletivo pelo empregador público autárquico interessado.

14.º

Vale por dizer: ante a falta de concordância dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública, quanto à celebração de acordo coletivo para ser aplicável no âmbito de determinada autarquia local, com a consequente inviabilidade do seu depósito e eficácia, resulta aniquilada a possibilidade de as autarquias locais e os seus trabalhadores (neste caso, através das associações sindicais) lograrem autonomamente acomodar o respetivo regime laboral, dentro daquela que é a margem legalmente aberta à regulação por este tipo de acordos coletivos de trabalho.

15.º

Nesse sentido, a norma visada é expressão, em meu juízo, de desconformidade constitucional, na medida em que, sem embargo da anuência do empregador público local e das associações sindicais quanto às soluções concretamente preconizadas no âmbito de procedimento negocial dirigido à celebração de acordo coletivo de empregador público, pode a respetiva outorga ficar bloqueada sempre que o Governo, através dos seus membros indicados, não concorde com aquelas soluções, sinonimizando, relativamente a estes, uma sua prerrogativa ou poder de veto.

16.º

Tal realidade equivale, da parte do detentor do poder executivo, a uma inaceitável expropriação das autarquias locais do seu poder de “autoadministração” em matéria que respeita aos seus quadros de pessoal próprio (artigo 243.º da Lei Fundamental), concorrendo nesta valoração o entendimento que a doutrina e a jurisprudência constitucionais têm cimentado em relação ao princípio da autonomia local.

(…)

22.º

Em suma, ante o que acabámos de expor, o princípio da autonomia local afirma-se, no horizonte do Estado de Direito democrático, como dimensão estruturante do nosso modo de ser coletivo, inclusive no marco geográfico mais dilatado das democracias europeias, supondo «a existência de autarquias locais dotadas de órgãos de decisão constituídos democraticamente e beneficiando de uma ampla autonomia quanto às competências, às modalidades do seu exercício e aos meios necessários ao cumprimento da sua missão», conforme vem preambularmente afirmado na Carta Europeia de Autonomia Local, concluída em Estrasburgo em 15 de outubro de 1985 e de que o Estado português é parte.

23.º

A ponderação do que antecede aponta, por outro lado, para a consideração irrecusável de que, no domínio específico do regime do trabalho em funções públicas – espaço regulado do direito no qual conflui a problemática que nos ocupa – é ao Estado-legislador que compete a articulação entre os interesses do Estado e os interesses das autarquias locais, isto, naturalmente, no quadro das vinculações constitucionais que nesta matéria se impõem (vejam-se, paradigmaticamente, o n.º 2 do artigo 47.º, a alínea t) do n.º 1 do artigo 165.º e o artigo 269.º da Lei Fundamental).

24.º

Acresce que, segundo anteriormente antecipado, a Lei Fundamental garante às autarquias locais a disponibilidade de «quadros de pessoal próprio, nos termos da lei», sendo «aplicável aos funcionários e agentes da administração local o regime dos funcionários e agentes do Estado, com as adaptações necessárias, nos termos da lei» (n.ºs 1 e 2 do artigo 243.º da Constituição).

25.º

A este respeito é significativa a expressão da anotação ao mencionado preceito constitucional, pela pena de Jorge Miranda e Ana Fernanda Neves (In: Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, p. 508):

«A equivalência de regimes jurídicos não obsta a que o legislador disponha de modo diverso para os trabalhadores da Administração local. Não exclui a diferenciação de regimes laborais. Não por acaso, por isso, o n.º 2 alude às “necessárias adaptações”.

Deste modo, a adopção como parâmetro do “regime dos funcionários e agentes do Estado” requer um regime ou regimes jurídicos de trabalho que assegurem a comparabilidade e a mobilidade entre funções públicas (…).»

26.º

Nesta linha, prosseguem os mesmos Autores (ibid.):

«Por outro lado, a definição desse regime e a sua aplicação têm um limite no princípio da autonomia das autarquias locais (artigos 6.º, 235.º e 237.º). Esta demanda a salvaguarda da individualidade jurídica das autarquias como sujeitos empregadores, de que é expressão a referência, no n.º 1, a “quadros próprios”, e exclui o poder dispositivo do Governo sobre os respectivos trabalhadores ou a intervenção na gestão das respectivas relações de trabalho, sem prejuízo da verificação do cumprimento da lei em sede de tutela administrativa (artigo 242.º).»

27.º

Resulta, deste modo, clara a demarcação do espaço de intervenção do Estado- legislador e do Estado-administrador em matérias que relevam dos regimes jurídicos dos trabalhadores do Estado e dos trabalhadores da administração local, incluindo em sede de acordos coletivos de empregador público que possam reger as relações tituladas por contrato de trabalho em funções públicas, sendo que, ante a garantia de “quadros de pessoal próprio” das autarquias locais, o papel do Governo – “órgão superior da administração pública”, nos termos do artigo 182.º da Constituição –, encontra-se aí circunscrito ao exercício de funções administrativas de tutela, vale por dizer, estritamente para verificação do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos.

28.º

Neste sentido, a norma constante da alínea b) do n.º 3 do artigo 364.º da LTFP, atenta a faculdade de recusa que necessariamente inere à atribuição, aos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública, do poder de também celebrarem, pela parte do empregador público, os acordos coletivos de empregador público no âmbito da administração autárquica, faz extravasar o domínio dentro do qual o Executivo deve cingir-se, na área de normação em causa, turbando as suas relações com as autarquias locais com a lógica de “supremacia- subordinação”, constitucionalmente interdita.

29.º

Isto tanto mais quanto é certo que, ocorrendo já a salvaguarda, pela lei, da devida ponderação ou articulação entre os interesses do Estado e os interesses das autarquias locais – através de medidas, quer dirigidas a acautelar a referida “equivalência” e “comparabilidade” de regimes laborais nos respetivos distintos círculos da administração pública, senão mesmo a definir aqueles que sejam aspetos de regime inderrogáveis (mediante normas legais imperativas), quer, ainda, de carácter transversal, por via das limitações impostas, designadamente aos patamares de endividamento das autarquias locais (com eventuais reflexos nas opções destas últimas em matéria de orçamentação das despesas com pessoal e de gestão de recursos humanos) – o próprio legislador, no exercício da sua margem de conformação, não deixa, outros- sim, de demarcar a montante aquele que é o espaço aberto à contratação coletiva no âmbito das relações tituladas por contrato de trabalho em funções públicas.

30.º

Ora, a este propósito, conforme afirmam Jorge Miranda e Ana Fernanda Neves, ainda a respeito da constitucionalmente franqueada diferenciação de regimes laborais dos trabalhadores do Estado e dos trabalhadores da administração local (In: Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 508):

«A adopção do regime laboral privado, ainda que com modelações juspublicistas, relativamente a relações de trabalho na Administração pública tem associada uma maior abertura para a contratualização colectiva do regime jurídico, propiciando esta a diversificação dos regimes de trabalho, o que afasta também uma equiparação em toda a linha dos regimes laborais.»

31.º

Neste enquadramento, o raciocínio que vimos trilhando dirige-se fundamentalmente à afirmação de uma ideia forte, inelutável, na temática suscitada pela norma posta em crise: no horizonte da contratação coletiva franqueada na esfera das relações 1aborais que têm na sua base o contrato de trabalho em funções públicas, é ainda ao Estado-legislador que está cometida a articulação ou harmonização dos interesses nacionais e locais que se perfilam.

32.º

É nesse recorte normativo de antemão demarcado pela lei que se torna imperiosa a afirmação do “autogoverno” das autarquias locais quanto aos seus trabalhadores, o princípio da autonomia local reclamando a plenitude da sua “autodeterminação”, a exercer com responsabilidade própria, na celebração de acordos coletivos de empregador público, não sendo admissível que o legislador, na conformação das regras respeitantes à legitimidade para a respetiva celebração, pela parte do empregador público, aniquile esse espaço irredutível da autonomia local, como ocorre na situação vertente.

33.º

Vale por dizer: a celebração de acordo coletivo de empregador público, enquanto instrumento de regulação de determinados aspetos do regime laboral dos trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas, no âmbito da administração autárquica, configura domínio cuja gestão compete, dentro das vinculações legais pré-definidas, livre e plenamente às autarquias locais e em vista dos interesses próprios das respetivas populações – interesses que, justamente, «entranham as razões de proximidade, responsabilidade e controlabilidade que proporcionam a auto-organização», no dizer desse Tribunal, no Acórdão n.º 432/93 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 193, de 18 de agosto de 1993).

34.º

Efetivamente, situamo-nos em domínio no seio do qual se afirma, em plenitude, a “individualidade jurídica das autarquias como sujeitos empregadores”, atuantes em um patamar de conformação normativa, mediante instrumento de regulamentação coletiva, que, pela sua própria natureza e tal como legislativamente autorizado, consubstancia um espaço de derrogação permitida a determinados aspetos do regime laboral “geral”, bem como de consentida contratualização autonomamente austada entre o empregador público e os seus trabalhadores, através das associações sindicais.

35.º

Acresce que esta abertura a regimes diferenciados, consentânea com a extroversão da relação de emprego público titulada por contrato de trabalho em funções públicas a mecanismos de contratação coletiva enquanto instrumentos de autogestão de relações laborais, tradicionalmente circunscrito ao mundo das relações de trabalho privadas, é perspetivada pelo próprio legislador como integrando aquele núcleo essencial estatutário em matéria de trabalho em funções públicas, atento o elenco do já citado artigo 3.º da LTFP.

36.º

Neste sentido, está interdito um mecanismo de bloqueio, a jusante, desse poder e liberdade de contratação coletiva, como é aquele que flui da alínea b) do n.º 3 do artigo 364.º da LTFP, sempre que ocorra a discordância do Governo quanto ao teor do acordo coletivo a celebrar.

37.º

Isto, porquanto, é de todo impensável, em conformidade com o sentido da doutrina constitucional, anteriormente exposta, uma intervenção do Governo na esfera da celebração de acordos coletivos de empregador público, no âmbito da administração autárquica, que extravase uma tutela administrativa para “verificação do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos”, como se define no n.º 1 do artigo 242.º da Lei Fundamental, sob pena de violação do mesmo.

38.º

Repito, se a outorga de um acordo coletivo de empregador público, no âmbito da administração autárquica, depende, obrigatoriamente, por força das regras de legitimidade fixadas naquele preceito, da concordância dos referidos membros do Governo, a falta de anuência destes acarreta necessariamente a impossibilidade de vigência do acordo coletivo que acomode as relações laborais entre a autarquia local e os seus trabalhadores, assim se espoliando uma dimensão irrecusável da garantia da autonomia local, tal como gizada na Constituição.

39.º

As regras de legitimidade, da parte do empregador público, vertidas na alínea b) do n.º 3 do artigo 364.º da LTFP, equivalem pois a uma medida de sujeição dos acordos coletivos de empregador público, na esfera da administração autárquica, a uma espécie de autorização ou juízo de mérito do Governo, aniquiladora, no limite e enquanto prerrogativa de veto em matéria que releva da gestão do pessoal das autarquias locais, daquela «ideia de responsabilidade autónoma na gestão de um universo de interesses próprios que tem que ver com a essencialidade da autonomia», para me socorrer de passagem do Acórdão n.º 432/93 desse Tribunal, anteriormente invocado.

40.º

Ora, justamente, na sua “dimensão de juridicidade”, enquanto “dimensão básica do Estado de direito democrático” que inere à afirmação constitucional do poder local, a garantia da autonomia local estabelece-se como “limite do poder unitário e descentralizado” (nesse sentido, veja-se J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, cit., p. 639).

41.º

Neste sentido, é de todo intolerável uma norma que, ao fazer depender da concordância do Governo a outorga de acordo coletivo de empregador público no âmbito da administração local, a falta da sua anuência obstaculizando a respetiva celebração, seja, ela própria, a negação clara e em termos inequívocos do princípio da autonomia local, afetando aquele que é o “espaço incomprimível” ou a essencialidade da existência, no quadro do Estado unitário, das autarquias locais.

42.º

Em conformidade, viola consequentemente também o princípio constitucional da autonomia local a norma constante do n.º 6 do artigo 364.º da LTFP, na parte aplicável aos membros do Governo, ou respetivos representantes, na medida em que a assinatura pelos mesmos dos acordos coletivos de empregador público no âmbito da administração autárquica consubstancia uma verdadeira autorização para a respetiva celebração.»

  1. Notificada nos termos do artigo 54.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro [LTC]), para que a Assembleia da República se pronunciasse sobre o pedido, na qualidade de autora da norma, a Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos.
  1. Apresentado o memorando a que se refere o artigo 63.º, n.º 1, da LTC e fixada a orientação do Tribunal, cumpre elaborar o acórdão nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

  

II – Fundamentação

 

  1. a) Delimitação do objeto do pedido
  1. O Provedor de Justiça pede a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da «norma constante da alínea b) do n.º 3 do artigo 364.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, bem como, consequentemente, da norma constante do n.º 6 do mesmo artigo 364.º da LTFP, na parte aplicável, em ambas as disposições, à outorga pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública dos acordos coletivos de empregador público no âmbito da administração autárquica».
  1. O artigo 364.º, n.º 3 e 6, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada em anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, (LTFP, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 35/2014) tem o seguinte teor:

«Artigo 364.º

Legitimidade e representação

(…)

3 — Têm legitimidade para celebrar acordos coletivos de empregador público:

(…)

  1. b) Pelo empregador público, os membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública, o que superintenda no órgão ou serviço e o empregador público nos termos do artigo 27.º

(…)

6 — Os acordos coletivos são assinados pelos representantes das associações sindicais, bem como pelos membros do Governo e representantes do empregador público, ou respetivos representantes.»

O artigo 27.º da LTFP, para onde remete o artigo 364.º, n.º 3, alínea b), dispõe o seguinte:

«Artigo 27.º

Exercício das competências inerentes à qualidade de empregador público

(…)

2 – As competências inerentes à qualidade de empregador público, na administração autárquica, são exercidas:

  1. a) Nos municípios, pelo presidente da câmara municipal;
  2. b) Nas freguesias, pela junta de freguesia;
  3. c) Nos serviços municipalizados, pelo presidente do conselho de administração.

(…)»

  1. Decorre da remissão para o artigo 27.º da LTFP que o artigo 364.º, n.º 3, alínea b), da mesma lei se aplica à negociação de acordos coletivos pela administração autárquica, conferindo aos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração pública legitimidade para a celebração e, nos termos do n.º 6 do mesmo artigo, assinatura desses acordos. Assim, a redação atual do preceito permite a interpretação de que, para a negociação de acordos coletivos de empregador público na administração local, se estabelece, pela parte do empregador público, uma legitimidade plural, exigindo-se a intervenção simultânea dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração pública e do empregador público autárquico. É esta a interpretação assumida no contexto da norma objeto do presente pedido.

No que diz respeito às autarquias locais situadas nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, a aplicação da LTFP com as adaptações respeitantes às competências em matéria administrativa dos correspondentes órgãos de governo próprio (artigo 1.º, n.º 2, da LTFP), tem levado a que o artigo 364.º, n.º 3, alínea b), seja interpretado no sentido de, nesse caso, a legitimidade para celebrar estes acordos, pela parte do empregador público, pertencer aos membros dos Governos Regionais responsáveis pelas áreas das finanças e da administração pública e ao empregador público autárquico. Esta dimensão normativa não foi submetida pelo requerente à apreciação do Tribunal Constitucional.

O objeto do requerimento de fiscalização de constitucionalidade, que cumpre apreciar, é, pois, a norma que atribui aos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração pública legitimidade para celebrar e assinar acordos coletivos de empregador público no âmbito da administração autárquica, conjuntamente com os órgãos competentes do empregador público autárquico (artigo 364.º, n.º 3, alínea b), e n.º 6, da LTFP).

De acordo com o pedido, as normas objeto de apreciação encontram-se em contradição com o estatuto constitucional das autarquias locais, nomeadamente com o princípio da autonomia local. Importa, por isso, começar por fazer o respetivo enquadramento constitucional deste princípio.

 

  1. b) O princípio da autonomia local e a garantia de “pessoal próprio” das autarquias locais

 

  1. A autonomia local é um dos pilares fundamentais em que assenta a organização territorial da República Portuguesa, tal como resulta do artigo 6.º, n.º 1, da Constituição.

Nesse contexto, a autonomia local deve ser associada ao princípio constitucional geral da unidade do Estado e, lida em contexto com a autonomia regional, o princípio da subsidiariedade e a descentralização administrativa (Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 232). A importância central desta matéria tem como consequência o tratamento jurisprudencial desenvolvido pelo Tribunal Constitucional sobre o alcance da garantia constitucional da autonomia local (cfr. A. Maurício, “A garantia constitucional da autonomia local à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional”, in Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2003, pp. 625-657). O princípio da autonomia local, de que importa agora tratar, é desenvolvido na Constituição no seu título VIII, relativo ao Poder local, da parte III (Organização do poder político). O enquadramento supralegal das autarquias locais é, ainda, completado pela Carta Europeia da Autonomia Local, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 28/90, de 23 de outubro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 58/90, de 23 de outubro, vigente na nossa ordem jurídica por força do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição.

  1. O artigo 235.º da Constituição estabelece que a «organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais», que são «pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas». Esta norma constitucional garante e impõe a existência de autarquias locais em todo o país e «tem um sentido de garantia institucional, assegurando a existência de administração local autárquica autónoma» (Acórdão n.º 296/2013, n.º 12).

As autarquias locais são mais que «mera administração autónoma do Estado», uma vez que «concorrem, pela própria existência, para a organização democrática do Estado. Justificadas que são pelos valores da liberdade e da participação, as autarquias conformam um “âmbito de democracia” (Ruiz Miguel), num sistema que conta precisamente com o princípio básico de que toda a pessoa tem direito de participar na adoção das decisões coletivas que a afetam» (cfr. Acórdão n.º 432/93, n.º 1.2., cfr. também Acórdão n.º 296/2013, n.º 13, e o Acórdão n.º 109/2015, n.º 10). Nesse contexto, José de Melo Alexandrino, define autarquia local como «a forma específica de organização territorial, na qual uma comunidade de residentes numa circunscrição territorial juridicamente delimitada dentro do território do Estado prossegue interesses locais, através do exercício de poderes públicos autónomos», acentuando o Autor um conjunto de ideias das quais destacamos «o relevo e a inafastável feição política dos entes locais» e «um certo grau deimediatividade dos poderes públicos (dado pelo autogoverno inerente à legitimidade e representatividade democráticas dos órgãos), mas também a independência relativamente a orientações ou poderes condicionantes externos, nomeadamente estatais» (“Direito das Autarquias Locais”, in Tratado de Direito Administrativo Especial, vol. IV, Almedina, 2010, pp. 111-112).

As autarquias locais têm como objetivo constitucionalmente traçado a prossecução de interesses próprios das populações respetivas (artigo 235.º, n.º 2). Também segundo o artigo 3.º, n.º 1, da Carta Europeia da Autonomia Local, «o princípio da autonomia local pressupõe e exige, entre outros, o direito e a capacidade de as autarquias regulamentarem e gerirem, nos termos da lei, sob a sua responsabilidade e no interesse das respetivas populações, uma parte importante dos assuntos públicos» (Acórdão n.º 296/2013, n.º 14). Entende José de Melo Alexandrino que a garantia institucional da autonomia local, «na fórmula consagrada pelo Tribunal Constitucional federal alemão», é «uma garantia institucional de todas as atribuições enraizadas na comunidade local ou a ela especificamente referidas e que a mesma seja capaz de levar a cabo de forma autónoma e sob a sua responsabilidade própria» (ob. cit., pp. 83-84). Nas palavras do Acórdão n.º 432/93, (n.º 1.2. e 1.3.), esses interesses próprios das populações:

«(…) justificam a autonomia e porque a justificam delimitam-lhe o conteúdo essencial. Eles entranham as razões de proximidade, responsabilidade e controlabilidade que proporcionam a auto-organização.

O espaço incomprimível da autonomia é, pois, o dos assuntos próprios do círculo local, e “assuntos próprios do círculo local são apenas aquelas tarefas que têm a sua raíz na comunidade local ou que têm uma relação específica com a comunidade local e que por esta comunidade podem ser tratados de modo autónomo e com responsabilidade própria (…und von dieser örtlichen Gemeinschaft eigenverantwortlich und selbständig bewältigtwerden können)” (Sentença  do Tribunal Constitucional alemão n.º 15, de 30 de Julho de 1958, in Entscheidungendes Bundesverfassungsgerichts, 8.º volume, pág. 134; cf., no mesmo sentido, Parecer n.º 3/82 da Comissão Constitucional in Pareceres da Comissão Constitucional, 18.º volume, pág. 151).

1.3 – Isso não implica que as autarquias não possam ou não devam ser chamadas a uma actuaçãoconcorrente com a do Estado na realização daquelas tarefas. O “paradigma social do Direito” (Habermas) aponta mesmo para uma política de cooperação e de intervenção de todas as instâncias com imediata possibilidade de realizarem as imposições constitucionais.»

  1. A prossecução dos interesses próprios das populações locais pelas autarquias tem que ser conjugada com a prossecução do interesse nacional pelo Estado. De facto, como o Tribunal Constitucional já afirmou, «como as autarquias locais integram a administração autónoma, existe entre elas e o Estado uma pura relação de supraordenação-infraordenação, dirigida à coordenação de interesses distintos (os interesses nacionais, por um lado, e os interesses locais, por outro), e não uma relação de supremacia-subordinação que fosse dirigida à realização de um único e mesmo interesse – o interesse nacional, que, assim, se sobrepusesse aos interesses locais» (Acórdão n.º 379/96, n.º 5.3.). Como nota André Folque, quando «a autonomia municipal postula interesses próprios e quando se fala na concorrência da dimensão nacional com a dimensão local, isso não corresponde a uma sobreposição de atribuições. De outro modo, seria preterida a esfera de interesses próprios (art. 235.º, n.º 2)» (A tutela administrativa nas relações entre o Estado e os Municípios, Coimbra Editora, 2004, pp. 130-131).

Sendo certo que «as atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos, serão reguladas por lei» (artigo 237.º, n.º 1, da Constituição), é nesse contexto que o legislador deve balancear a prossecução de interesses locais e do interesse nacional ou supralocal, gozando de uma vasta margem de autonomia. No entanto, ao desempenhar essa tarefa, «o legislador não pode pôr em causa o núcleo essencial da autonomia local; tem antes que orientar-se pelo princípio da descentralização administrativa e reconhecer às autarquias locais um conjunto de atribuições próprias (e aos seus órgãos um conjunto de competências) que lhes permitam satisfazer os interesses próprios (privativos) das respetivas comunidades locais» (Acórdão n.º 379/96, n.º 5.2., e Acórdão n.º 329/99, n.º 5.4.).

Assim, na síntese efetuada por Artur Maurício sobre a jurisprudência relativa à garantia da autonomia local: «a autonomia do poder local vem sendo essencialmente concebida como uma garantia organizativa e de competências, reconhecendo-se as autarquias locais como uma estrutura do poder político democrático e com um círculo de interesses próprios que elas devem gerir sob a sua própria responsabilidade» só podendo a «restrição legal desses interesses (…) ser feita com o fim da prossecução de um interesse geral, que ao legislador compete definir, não podendo, de todo o modo, ser atingido o núcleo essencial da garantia da administração autónoma». «Nos âmbitos que considera abertos à concorrência do Estado e das autarquias vem ainda o Tribunal entendendo (…) que são constitucionalmente legítimas compressões da autonomia local, não deixando, contudo, de fazer passar as medidas legislativas ou regulamentares em causa pelo crivo da adequação e da proporcionalidade» (ob. cit., pp. 656-657).

  1. A autonomia das autarquias locais, intrinsecamente relacionada com a gestão democrática da República, tal como constitucionalmente desenhada, pressupõe um conjunto de poderes autárquicos que asseguram uma sua atuação relativamente livre e incondicionada face à administração central no desempenho das suas atribuições, visando a prossecução do interesse da população local. Com o objetivo de assegurar essa liberdade de atuação, a Constituição consagra diversas dimensões ou elementos constitutivos da autonomia local. Aí se inscreve, nomeadamente, a autonomia de organização (artigo 237.º, n.º 1), a autonomia orçamental (artigo 237.º, n.º 2), a autonomia patrimonial e financeira (artigo 238.º, n.º 1 a 3), a autonomia fiscal (artigo 238.º, n.º 4, e artigo 254.º), a autonomia referendária (artigo 240.º, n.º 1), a autonomia regulamentar (artigo 241.º) e a autonomia em matéria de pessoal (artigo 243.º). Como António Cândido de Oliveira refere, existe um «conjunto de poderes constitucionalmente garantidos», tais como «o poder de dispor de órgãos próprios eleitos democraticamente; o poder de dispor de património e finanças próprias; o poder de dispor de um quadro de pessoal próprio; o poder regulamentar próprio; o de exercer sob responsabilidade própria um conjunto de tarefas adequadas à satisfação dos interesses próprios das populações respetivas», que «garante à administração local uma situação de não submissão em relação à administração do Estado», e constitui «aquilo a que poderíamos chamar a vertente de defesa da autonomia local» (Direito das Autarquias Locais, Coimbra Editora, 2013, pp. 92- 93).

O condicionamento ou compressão da autonomia local (nomeadamente dos seus elementos) pode apenas decorrer da lei, quando um interesse público nacional ou supralocal o justificar, e sempre com a ressalva do seu núcleo incomprimível. Efetivamente, «a autonomia municipal não pode afetar a integridade da soberania do Estado. De facto, os poderes locais também são, por natureza, limitados, pois não podem ser exercidos para além do âmbito de interesses (necessariamente locais) que os justificam, não podendo invadir espaços de deliberação ou atuação que devem permanecer reservados à esfera da comunidade nacional» (cfr. M. Lúcia Amaral, A Forma da República, Coimbra Editora, 2012, p. 385).

  1. É neste contexto que deve ser entendida a autonomia local em termos de existência de «quadros de pessoal próprio, nos termos da lei» (artigo 243.º, n.º 1), sendo aplicável aos trabalhadores em funções públicas das autarquias o regime aplicável aos do Estado «com as necessárias adaptações, nos termos da lei» (artigo 243.º, n.º 2). Trata-se de um elemento da autonomia, constitucionalmente protegido, relacionado com o poder de auto-organização dos serviços (M. J. L. Castanheira Neves, Governo e administração local, Coimbra Editora, 2004, p. 276). A garantia de um corpo próprio de trabalhadores das autarquias, não dependentes da administração do Estado é instrumental face à execução das atribuições das autarquias visando a prossecução dos interesses próprios das respetivas populações (A. Cândido de Oliveira, ob. cit., p. 202). Só dessa forma se garante o caráter autónomo da administração local, consagrado na Constituição.

Decorre, portanto, da garantia de autonomia local que as autarquias possam assumir o papel de entidade empregadora pública, de forma autónoma face ao Estado, quer relativamente às relações individuais de trabalho com os trabalhadores em funções públicas, quer, na configuração atualmente existente na lei, em relação às relações coletivas, quanto à celebração de acordos coletivos de trabalho com as associações sindicais representativas dos respetivos trabalhadores.

 

  1. c) A contratação coletiva e o regime do trabalho em funções públicas  
  1. Para analisar a questão de constitucionalidade colocada pelo pedido, é necessário compreender o enquadramento dos acordos coletivos de empregador público, que constituem um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho previsto na LTFP.

A possibilidade de recurso a estes instrumentos no âmbito das relações de trabalho da administração pública só foi introduzida no ordenamento português com a Lei n.º 23/2004, de 22 de junho, que regulava o regime jurídico do contrato individual de trabalho da administração pública, e apenas para os trabalhadores abrangidos por esses contratos. A generalização destes instrumentos no âmbito da administração pública apenas ocorreu com a Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, que continha os regimes de vinculação, de carreiras e de remuneração dos trabalhadores em funções públicas, e com a Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, que aprovou o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (RCTFP).

Este regime veio a ser revogado pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, que aprovou, em anexo, a LTFP. Esta lei regula o vínculo de trabalho em funções públicas e é aplicável à administração direta e indireta do Estado e, com as necessárias adaptações, aos serviços da administração regional e da administração autárquica (artigo 1.º, n.º 1 e 2, da LTFP). Tomando o Código do Trabalho como regime subsidiário, há matérias cujo regime, sem prejuízo das adaptações que se revelem necessárias, é totalmente regulado naquela sede (artigo 4.º da LTFP) e outras matérias «cuja especificidade justifica, quando não constitucionalmente impõe» um regime diferenciado (exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 184/XII que deu origem à LTFP).

  1. A negociação coletiva dos trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas é um desses casos de regulação autónoma face ao Código do Trabalho, encontrando-se o seu regime nos artigos 347.º a 386.º da LTFP. A negociação coletiva visa a obtenção de um acordo sobre matérias que integram o estatuto dos trabalhadores em funções públicas, a incluir em atos legislativos ou regulamentos administrativos, ou a celebração de um instrumento de regulamentação coletiva convencional que lhes seja aplicável (artigos 13.º, n.º 1, e 347.º, n.º 1 e 2, da LTFP) e o seu procedimento encontra-se nos artigos 359.º a 363.º da LTFP. O conjunto de matérias sobre as quais pode dispor um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho é restrito. De acordo com o artigo 355.º, n.º 1, da LTFP, para além de outras matérias previstas na LTFP ou em norma especial, este só pode dispor sobre: suplementos remuneratórios, sistemas de recompensa do desempenho, sistemas adaptados e específicos de avaliação do desempenho, regimes de duração e organização do tempo de trabalho, regimes de mobilidade e ação social complementar. Estes instrumentos não podem contrariar norma legal imperativa, dispor sobre a estrutura, atribuições e competências da administração pública ou conferir eficácia retroativa a qualquer cláusula que não seja de natureza pecuniária (artigo 355.º, n.º 2, da LTFP).

Os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho distinguem-se, de acordo com a LTFP, em convencionais e não convencionais. São convencionais, o acordo coletivo de trabalho, o acordo de adesão e a decisão de arbitragem voluntária; é não convencional a decisão de arbitragem necessária. Os acordos coletivos de trabalho podem revestir duas modalidades (artigo 13.º, n.os 2 a 7, da LTFP): i) o acordo coletivo de carreira (aplicável no âmbito de uma carreira ou de um conjunto de carreiras, independentemente do órgão ou serviço onde o trabalhador exerça funções); e ii) o acordo coletivo de empregador público (aplicável no âmbito do órgão ou serviço onde o trabalhador exerça funções). Os acordos coletivos de carreira devem indicar as matérias que podem ser reguladas pelos acordos coletivos de empregador público. Quando tal não acontece ou em caso de inexistência de acordo coletivo de carreira, os acordos coletivos de empregador público apenas podem regular as matérias relativas a segurança e saúde no trabalho e duração e organização do tempo de trabalho, excluindo as respeitantes a suplementos remuneratórios (artigo 14.º da LTFP).

Podem celebrar acordos coletivos de carreiras gerais (carreiras cujos conteúdos funcionais caracterizam postos de trabalho de que a generalidade dos órgãos ou serviços carece para o desenvolvimento das respetivas atividades), em representação dos empregadores públicos, os membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração pública (artigo 364.º, n.º 1, da LTFP). Têm legitimidade para celebrar acordos coletivos de carreiras especiais (carreiras cujos conteúdos funcionais caracterizam postos de trabalho de que apenas um ou alguns órgãos ou serviços carecem para o desenvolvimento das respetivas atividades), pelos empregadores públicos, os membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração pública e os restantes membros do Governo interessados, em função das carreiras objeto dos acordos (artigo 364.º, n.º 2, da LTFP). Por fim, têm legitimidade para celebrar acordos coletivos de empregador público, pelo empregador público, os membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração pública, o que superintenda no órgão ou serviço e o empregador público nos termos do artigo 27.º (artigo 364.º, n.º 3, da LTFP).

Os acordos coletivos são assinados pelos representantes das associações sindicais, bem como pelos membros do Governo e representantes do empregador público, ou respetivos representantes (artigo 364.º, n.º 6). O acordo coletivo de trabalho é entregue para depósito na Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP), nos cinco dias subsequentes à data da assinatura (artigo 368.º, n.º 1, da LTFP), dependendo este depósito do cumprimento dos artigos 365.º e 368.º, n.º 2 e 3, da LTFP.

 

  1. d) Análise do problema da constitucionalidade da norma objeto de fiscalização: A autonomia local e a legitimidade ativa para a contratação coletiva
  1. Como já foi referido, têm legitimidade para a celebração de acordos coletivos de empregador público «o empregador público, os membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública, o que superintenda no órgão ou serviço e o empregador público nos termos do artigo 27.º» (artigo 364.º, n.º 3, alínea b), LTFP). A sua celebração é necessariamente precedida de processo negocial (artigo 359.º, n.º 1, da LTFP), pelo que a previsão legal de legitimidade para a celebração de acordos, pelo artigo 364.º, n.º 3, alínea b), LTFP, implica a atribuição de competência para a sua negociação. Nos termos do n.º 6 do mesmo artigo, tem legitimidade para a assinatura desses acordos, pela parte pública, os membros do Governo e os representantes do empregador público.

Embora se vise a celebração de um único acordo coletivo, a norma prevê que a atribuição de legitimidade, pelo lado público, a uma pluralidade de entidades − para além do empregador, devem negociar e celebrar o acordo os membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração pública. Assim, a norma impugnada faz depender a vigência do acordo da concordância do Governo.

O requerente faz assentar a sua argumentação na violação pelas normas impugnadas do princípio da autonomia local, acolhido no artigo 6.º, n.º 1, da Constituição. Alega que, dependendo a celebração de um acordo coletivo de empregador público, no âmbito da administração autárquica, obrigatoriamente, por força das regras de legitimidade, da concordância dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração pública, na qualidade de cocontratantes, a ausência dessa anuência acarreta necessariamente a impossibilidade de outorga do acordo coletivo pelo empregador público autárquico interessado. Isto traduz-se na atribuição de um poder de “veto” ao Governo, que pode bloquear o acordo, sempre que não concorde com as soluções preconizadas pelo empregador público local e pelas associações sindicais. Como refere o requerente, a questão de constitucionalidade coloca-se perante a impossibilidade «de as autarquias locais e os seus trabalhadores (neste caso, através das associações sindicais) lograrem autonomamente acomodar o respetivo regime laboral, dentro daquela que é a margem legalmente aberta à regulação por este tipo de acordos coletivos de trabalho», perante «a falta de concordância dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública, quanto à celebração de acordo coletivo» (14.º do requerimento). Este mecanismo de bloqueio do poder e liberdade de contratação coletiva deve ser considerado violador da autonomia local.

  1. A autonomia em matéria de pessoal é um dos «elementos» constitutivos da autonomia local consagrada na Constituição (Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, Coimbra Editora, 2010, p. 750) e abrange o poder de as autarquias disporem de «quadros de pessoal próprio», ou seja, distintos dos do Estado ou das Regiões (artigo 243.º, n.º 1, da Constituição).

A existência de mapas de pessoal próprio significa que os trabalhadores «das autarquias não são funcionários do Estado, mas delas mesmas; cada autarquia tem um corpo próprio de funcionários, independente do Estado e das demais autarquias. Por outro lado, as autarquias podem criar autonomamente, nos limites da lei, os seus quadros de pessoal necessário para a gestão das suas atividades, segundo o princípio da liberdade de escolha do sistema de organização» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, p. 750). Como se afirma no Preâmbulo da Carta Europeia de Autonomia Local, esta «supõe a existência de autarquias locais dotadas de órgãos de decisão constituídos democraticamente e beneficiando de uma ampla autonomia quanto às competências, às modalidades do seu exercício e aos meios necessários ao cumprimento da sua missão». Estabelece o artigo 9.º, n.º 1, desta Carta que «as autarquias locais têm direito, no âmbito da política económica nacional, a recursos próprios adequados, dos quais podem dispor livremente no exercício das suas atribuições». Nestes recursos incluem-se os recursos financeiros mas também os recursos humanos necessários e adequados à “prossecução dos interesses próprios das populações”.

Aos trabalhadores em funções públicas das autarquias locais é aplicável o mesmo regime jurídico do dos trabalhadores do Estado, «com as adaptações necessárias, nos termos da lei» (artigo 243.º, n.º 2) «tanto no que respeita ao regime constitucional como no que se refere ao regime legal». As “adaptações necessárias” salvaguardam, no entanto, «regimes próprios referentes à constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na administração local» e a «autonomia contratual» (Gomes Canotilho/ Vital Moreira, ob. cit., p. 750). Assim, «a equivalência de regimes jurídicos não obsta a que o legislador disponha de modo diverso para os trabalhadores da administração local. Não exclui a diferenciação de regimes laborais. Não por acaso, por isso, o n.º 2 alude às “necessárias adaptações”» (J. Miranda/ A. Fernanda Neves, anotação ao artigo 243.º, in Constituição Portuguesa Anotada, J. Miranda/ R. Medeiros (org.), t. III, Coimbra Editora, 2007, p. 508).

  1. Como já se teve oportunidade de referir, a autonomia local, constitucionalmente garantida, visa «a prossecução de interesses próprios das populações respetivas» (artigo 235.º, n.º 2, da Constituição). É nesse contexto que a lei define as atribuições das autarquias (artigo 237.º, n.º 1), em domínios, áreas ou matérias determinadas, como o ordenamento do território, o ambiente, a cultura, a ação social, a proteção civil ou a educação (cfr. os artigos 7.º e 23.º do Regime Jurídico das Autarquias Locais, aprovado em anexo à Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro). Paralelamente, a Constituição consagra dimensões ou elementos constitutivos da autonomia, decorrentes do princípio da autonomia local, que garantem que o desempenho pelas autarquias, como entes democráticos locais, das suas atribuições não se encontra indevidamente condicionado pelo Governo (a autonomia orçamental, regulamentar, ou de pessoal). A existência de órgãos das autarquias com legitimidade democrática direta – que são eleitos pela população local e perante esta responsáveis – seria incompatível com a sujeição da sua organização ou funcionamento a uma qualquer relação de hierarquia ou sujeição a tutela de mérito pela administração do Estado. Caso contrário, os titulares do poder local poderiam ser politicamente responsabilizados por opções que não foram por si livremente tomadas.

Encontrando-se a autonomia local, tal como consagrada na Constituição, funcionalmente ligada à prossecução dos interesses próprios das populações (artigo 235.º, n.º 2), também os elementos dessa autonomia, onde se insere a autonomia em matéria de pessoal, são instrumentais face às atribuições das autarquias e essenciais para a sua prossecução. Um desses elementos, a autonomia financeira das autarquias locais, já foi «pacificamente reconhecida como um pressuposto da autonomia local», sem a qual «não há condições para uma efetiva autonomia», pelo Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 631/99, n.º 5). Como se afirma no Acórdão n.º 398/2013, n.º 3, ainda quanto à proteção constitucional da autonomia financeira das autarquias locais:

«A consagração constitucional da autonomia local traduz (…) o reconhecimento da existência de um conjunto de interesses públicos próprios e específicos de populações locais, que justifica a atribuição aos habitantes dessas circunscrições territoriais do direito de decisão no que respeita à regulamentação e gestão, sob a sua responsabilidade e no interesse dessas populações, de uma parte importante dos assuntos públicos. Este reconhecimento tem pressuposta a ideia de que as autarquias locais têm de dispor de património e receitas próprias que permitam conferir operacionalidade e tornar praticável a prossecução do interesse público, concretamente, dos interesses específicos e próprios das respetivas populações. Assim, para que possam levar a cabo o conjunto de tarefas que estão incluídas nas suas atribuições e competências, é colocada à disposição das autarquias locais um conjunto de mecanismos legais e operacionais suscetíveis de as tornarem exequíveis, designadamente a possibilidade de disporem de património e receitas próprias, gozando, assim, de autonomia financeira.»

O mesmo raciocínio é aplicável à autonomia local em matéria de pessoal, constante no artigo 243.º da Constituição, e decorrente da consagração do princípio da autonomia local pelo artigo 6.º da Constituição.

  1. A garantia institucional da autonomia local pressupõe, pois, que as autarquias disponham de recursos humanos próprios e que gozem de liberdade na sua gestão e organização dos seus serviços, tendo também consequências quanto ao regime legal aplicável. Efetivamente, a definição pelo legislador do regime aplicável aos trabalhadores em funções públicas das autarquias locais e a sua aplicação «têm um limite no princípio da autonomia das autarquias locais (artigos 6.º, 235.º e 237.º)», de onde decorre «a salvaguarda da individualidade jurídica das autarquias como sujeitos empregadores, de que é expressão a referência, no n.º 1, a “quadros próprios”, e exclui o poder dispositivo do Governo sobre os respetivos trabalhadores ou a intervenção na gestão das respetivas relações de trabalho, sem prejuízo da verificação do cumprimento da lei em sede de tutela administrativa (artigo 242.º)» (J. Miranda/ A. Fernanda Neves, ob. cit., p. 508). Assim sendo, encontra-se abrangido pelo princípio da autonomia local, no que diz respeito ao elemento de autonomia em termos de pessoal, o poder das autarquias atuarem como empregadores públicos relativamente aos respetivos trabalhadores em funções públicas, inscritos em mapas de pessoal próprios, e de gerir o respetivo serviço, de forma autónoma, nos termos de um regime legal adaptado à sua situação (artigo 6.º, n.º 1, e no artigo 243.º, n.º 1 e 2, da Constituição).

Aqui se inclui o poder de gestão e planeamento dos recursos humanos afetos aos serviços autárquicos, nos termos da lei, designadamente a previsão anual do respetivo mapa de pessoal (artigo 28.º e ss. da LTFP), a condução do procedimento de recrutamento e a celebração de contrato de trabalho em funções públicas (artigo 33.º e ss. da LTFP), o exercício dos poderes de empregador público (nomeadamente o poder de direção e o poder disciplinar – artigo 74.º e ss. e artigo 176.º e ss. da LTFP), a avaliação do desempenho dos trabalhadores (artigo 89.º e ss. da LTFP, Lei n.º 66-B/2007, de 28 de dezembro, que estabelece o Sistema Integrado de Gestão e Avaliação do Desempenho na Administração Pública [SIADAP], e o Decreto Regulamentar n.º 18/2009, de 4 de dezembro), a alteração de posicionamento remuneratório (artigo 156.º e ss. da LTFP) ou a cessação do vínculo de emprego público (artigo 288.º e ss. da LTFP). Paralelamente, também se inscreve no âmbito da autonomia local em matéria de pessoal, protegida constitucionalmente, o exercício pelas autarquias dos poderes e competências dos empregadores públicos, legalmente previstos na LTFP, no que diz respeito ao direito coletivo, no contexto das relações laborais públicas (artigo 314.º e ss. da LTFP) – nomeadamente quanto à negociação, celebração e assinatura de instrumentos de regulação coletiva convencional de trabalho relativamente aos seus trabalhadores (artigo 347.º e ss. da LTFP).

  1. Os acordos coletivos de empregador público das autarquias locais, nos termos previstos na LTFP, disciplinam aspetos do regime dos contratos de trabalho em funções públicas dos trabalhadores integrados nos mapas de pessoal próprios autárquicos. Nesse contexto, a competência para a sua celebração e assinatura logicamente pertence às autarquias, enquanto empregadores públicos. O Estado não é empregador público destes trabalhadores. No entanto, a norma objeto de fiscalização atribui legitimidade para a negociação, celebração e assinatura dos acordos coletivos, pelo lado público, a uma pluralidade de entidades: o empregador e os membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração pública.

A dinâmica da negociação conjunta, necessária quando há uma pluralidade de sujeitos do mesmo lado da negociação, não é uma realidade nova nem exclusiva da LTFP, ocorrendo igualmente no direito laboral privado. Se se visa a celebração de uma só convenção, subscrita por todos os sujeitos, estes terão que conjugar-se «numa “frente negocial”, organizada ou não, constituindo assim uma parte plúrima na relação com o interlocutor comum». Será uma negociação conjunta, a qual «não tem lugar apenas quando existe, à partida, plena comunidade de interesses (…). Pode verificar-se até em situações bem diversas, caracterizadas pela existência de zonas de conflito de interesses (…). A negociação conjunta não é, pois, um somatório de negociações separadas – pressupõe um consórcio negocial que, ele próprio, requer prévio ajustamento dos interesses coletivos que vão fazer-se ouvir do mesmo lado da mesa» (A. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 2012, p. 641). No entanto, neste caso é a lei que impõe a necessidade de negociação conjunta, pela parte do empregador público autárquico e do Governo, que não é empregador, pelo que tal impede uma aplicação simples a este caso dos quadros doutrinais e legais decorrentes do Código de Trabalho. A norma legal impugnada obriga a que os empregadores públicos autárquicos concertem posições nas propostas e nas respostas que apresentem à contraparte, as associações sindicais, com o Governo, que é uma entidade externa à relação laboral pública. Às autarquias encontra-se vedada a atuação negocial autónoma relativamente ao Governo.

O facto de a Constituição consagrar as autarquias como empregadores públicos autónomos, significa que estas deverão ter a possibilidade de aceder à contratação coletiva, nos termos legais, e que este acesso é uma decorrência do princípio da autonomia local. O legislador, em concretização da Constituição, consagrou um espaço de negociação coletiva no âmbito do regime dos trabalhadores em funções públicas, entre os respetivos representantes e as entidades empregadoras – que, neste caso são as autarquias. Sendo assim, a análise da norma objeto de fiscalização, na medida em que se limita o poder da autarquia, enquanto empregador, de celebrar contratos coletivos com os respetivos trabalhadores, dentro dos limites legais gerais, sem a interferência do Governo no processo negocial, leva a que se conclua que existe uma compressão do princípio da autonomia local, previsto no artigo 6.º da Constituição.

  1. Estamos no âmbito da regulação dos elementos próprios da autonomia local, constitucionalmente consagrados (que são meios para alcançar os seus fins: a prossecução dos interesses próprios das populações locais), neste caso, a autonomia em termos de pessoal.

Os elementos da autonomia (organizativa, financeira, regulamentar, ou de pessoal, por exemplo) encontram-se constitucionalmente garantidos enquanto tal (espaços de autonomia autárquica) e devem, como tal, ser respeitados. Não se aplica aqui, portanto, uma lógica de “condomínios de interesses” locais e supra-locais, cujas articulações são modeláveis pelo legislador. Estando constitucionalmente consagrada uma determinada dimensão de autonomia das autarquias, como a sua autonomia em termos de pessoal, esta dificilmente acomodará uma solução de balanceamento ou ponderação de interesses através de mecanismos complexos de co-gestão ou co-decisão. O recurso a instrumentos deste género obrigaria as autarquias a co-gerir com a administração do Estado dimensões constitucionalmente consagradas da sua autonomia, o que implicaria o seu esvaziamento de facto.

Isto não significa que o princípio da autonomia local seja ilimitado e incomprimível. Os elementos da autonomia são objeto de regulação pelo legislador (artigo 237.º, n.º 1) que, nesse contexto, pode condicionar ou comprimir a esfera de atuação autónoma das autarquias, quando um interesse público de âmbito nacional o justificar e desde que respeite o núcleo incomprimível da autonomia.

  1. São dois os  interesses públicos invocados para justificar a solução normativa em análise: (i) a garantia de semelhança e proximidade dos regimes aplicáveis a trabalhadores em funções públicas da administração local e aos trabalhadores da administração direta e indireta do Estado (artigo 243.º, n.º 2); e (ii) o equilíbrio das contas do sector público, quanto aos gastos com o pessoal. Foram estes os interesses identificados pelo Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, no Parecer n.º 9/2014 (publicado no Diário da República, 2.ª Série, de 6 de outubro de 2014), homologado por despacho do Secretário de Estado da Administração Pública, de 26 de setembro de 2014, relativo ainda ao RCTFP, já revogado. Quanto a este último interesse (ii), e no sentido da existência de um «princípio da compatibilidade financeira dos acordos que tem que ser observado», Ana Fernanda Neves refere que a «regulação coletiva do regime das relações de emprego na Administração Pública encontra-se limitada pela conformação orçamental da despesa que pode envolver e pelas políticas e interesses públicos em que entronca, que as mais das vezes não estão na disponibilidade dos empregadores públicos» e que a «garantia desta dupla compatibilização passa pela definição do procedimento de contratação e das regras de legitimidade para nele participar, respetivamente, de molde a garantir a necessária articulação com o Orçamento do Estado e a participação dos responsáveis pelas finanças e política de pessoal na Administração Pública» (O Direito da Função Pública, in Tratado de Direito Administrativo Especial, vol. IV, Coimbra, 2010, p. 393).
  1. Ora, os interesses públicos referidos não justificam a intervenção dos membros do Governo como partes contratantes, nos acordos coletivos em causa.

Desde logo, é de referir que a aplicação do mesmo regime legal geral, a LTFP, a todos os trabalhadores em funções públicas: da administração local e da administração direta e indireta do Estado (cfr. o seu artigo 1.º, n.º 2) garante a semelhança dos regimes aplicáveis a trabalhadores em funções públicas da administração local e aos trabalhadores da administração direta e indireta do Estado. Para além disso, a própria LTFP contém diversas soluções legais que permitem assegurar a prevalência dos interesses públicos referidos, nomeadamente: (i) a determinação de que o instrumento de regulamentação coletiva de trabalho não pode contrariar norma legal imperativa (artigo 355.º, n.º 2, alínea a), da LTFP); (ii) a previsão de que o acordo coletivo de carreira é celebrado, por parte dos empregadores públicos, por membros do Governo (artigo 364.º, n.º 1 e 2, da LTFP); (iii) a limitação de matérias sobre que podem incidir os acordos coletivos de empregador público. Estes apenas podem regular as matérias indicadas em acordo coletivo de carreira (celebrado, pela parte pública, pelo Governo) ou, na falta desta indicação ou perante inexistência deste acordo, limitam-se a poder incidir sobre as matérias relativas a segurança e saúde no trabalho e duração e organização do tempo de trabalho, excluindo as respeitantes a suplementos remuneratórios (artigo 14.º da LTFP).

A intervenção do Estado na definição do regime legal aplicável aos trabalhadores em funções públicas, incluindo os das autarquias locais, e na celebração dos acordos coletivos de carreiras, assegura a existência de instrumentos eficazes para a prossecução do interesse público nacional na uniformidade e comparabilidade de regimes jurídicos, bem como do interesse em assegurar o equilíbrio de contas do sector público. A intervenção de membros do Governo na celebração de acordos coletivos de empregador público no âmbito da administração direta e indireta do Estado pode encontrar justificação nos poderes de direção e de superintendência que sobre estas o Governo exerce – mas tal não é defensável no que diz respeito à administração autárquica, constitucionalmente autónoma nomeadamente em termos de «quadros de pessoal próprio».

  1. É possível à lei restringir, condicionar e limitar o poder de contratação coletiva e, em concreto, a margem de livre atuação dos empregadores públicos autárquicos na celebração de acordos coletivos de empregador público – dentro dos limites da Constituição –, designadamente quanto às cláusulas relativas à redução do limite máximo do período normal de trabalho, por exemplo retirando esta matéria do âmbito abrangido pela contratação coletiva ou impondo condicionalismos orçamentais ou financeiros. Nesse caso, terá o Governo legitimidade para, no exercício dos seus poderes de controlo, averiguar do seu cumprimento. A lei também pode vincular a celebração de instrumentos de regulação coletiva pelas autarquias (neste caso, acordos coletivos de empregador público) à conformidade com instrumentos, celebrados pelo Governo, de aplicação geral a todos os trabalhadores em funções públicas ou a todos os integrados em determinada carreira (como os acordos coletivos de carreira). Estes são instrumentos possíveis para o equilíbrio entre a prossecução dos interesses públicos supralocais e a tendencial uniformidade de regimes aplicáveis e a autonomia local em termos de pessoal e a adaptação dos regimes à realidade local (artigo 6.º, n.º 1, e artigo 243.º, n.º 1 e 2, da Constituição), mesmo dentro das áreas reservadas à contratação coletiva.

No entanto, se o legislador não recorre a nenhum destes mecanismos e consagra a possibilidade de recurso à contratação coletiva, por parte das entidades públicas empregadoras, nomeadamente as autarquias, num determinado conjunto de matérias, então não é admissível que permita ao Governo limitar a autonomia de atuação das autarquias nesse âmbito.

É certo que na solução normativa sob análise o Governo se encontra numa posição negocial paritária à das autarquias. No entanto, na medida em que estas são forçadas a obter o seu assentimento, pois a sua falta impede a celebração do acordo, o Governo pode influenciar decisivamente o acordo. Quando o legislador atribui legitimidade ao Governo, em conjunto com os empregadores autárquicos, para celebrar estes acordos, permite-lhe condicionar a liberdade de conformação do conteúdo material dos acordos à vontade das partes na relação de emprego público, formulando juízos de mérito, conveniência ou oportunidade relativamente à conformação da atividade laboral do pessoal próprio das autarquias locais abrangido pela LTFP. De facto, a norma em causa permite ao Governo sobrepor «as suas próprias opções políticas às das autarquias no exercício dos seus poderes discricionários, restringindo portanto a liberdade de decisão autárquica» (Vital Moreira, «Empréstimos municipais, autonomia local e tutela governamental», in Direito Regional e Local, n.º 3, 2008, p. 38). Assim, o «Estado é erigido a parceiro necessário de acordo coletivo aplicável a trabalhadores das autarquias locais, interferindo diretamente na gestão dos mesmos, como se seu empregador fosse» (A. Fernanda Neves, «35 horas de trabalho nas autarquias locais», in Questões Atuais de Direito Local, n.º 6, 2015, p. 140). A introdução de limites legais «à livre administração autárquica» é diferente da «ocupação, ou respetivo exercício, desse espaço de administração» pelo Governo (A. Fernanda Neves, ob. cit., pp. 141-142). As normas objeto de fiscalização levam a uma absoluta subalternização do poder decisório autárquico face ao juízo de valor do Governo.

A partir do momento em que uma determinada matéria se encontra consagrada na lei como uma área em que pode existir contratação coletiva pública, esta deve ser exercida pelas autarquias de forma autónoma, apenas limitada por um controlo de legalidade. O facto de a Constituição consagrar as autarquias como empregadores autónomos significa que estas deverão ter a possibilidade de aceder à contratação coletiva, nos termos legais. A norma objeto de análise habilita intervenções do Governo na gestão dos recursos humanos das autarquias que podem incidir sobre o mérito das declarações negociais que os órgãos das autarquias locais entendam fazer, dentro da margem de livre atuação que o legislador confiou aos empregadores públicos, o que é inaceitável. No domínio da gestão de pessoal – porque se trata de um elemento constitutivo da autonomia local – é dificilmente justificável a existência de mecanismos de codecisão ou ponderação administrativa de interesses, cabendo a sua regulação e eventual compressão ao legislador democrático, dentro dos limites constitucionais. As autarquias, ao atuarem neste contexto estão a exercer a sua autonomia constitucionalmente protegida – que não pode ficar dependente de autorização, confirmação ou outro tipo de controlo estatal do mérito da sua atuação. O propósito da consagração constitucional da existência de pessoal próprio, dotado de um regime legal adaptado à realidade autárquica, é precisamente a garantia do caráter autónomo da administração local, permitindo às autarquias não depender da hierarquia da administração central no seu relacionamento (singular ou coletivo) com os respetivos trabalhadores.

  1. O Provedor de Justiça suscita a inconstitucionalidade da norma objeto do processo também face aos «termos delimitados para a tutela administrativa contidos no n.º 1 do seu artigo 242.º». A Constituição limita a tutela administrativa sobre as autarquias à «verificação do cumprimento da lei» (artigo 242.º, n.º 1), pelo que a considerar-se que estamos em presença de uma forma de tutela do mérito da atuação autárquica, esta seria indubitavelmente inconstitucional.

Analisando a solução normativa em presença, no entanto, é certo que não estamos perante a instituição de uma relação de tutela de mérito. De facto, atentos o conteúdo e o alcance da norma impugnada, é patente que nela não se estabelece uma relação tutelar. Ao atribuir legitimidade para a celebração de acordos coletivos de empregador público no âmbito da administração autárquica a membros do Governo, não se lhes atribui um poder de controlo sobre a atuação do empregador público autárquico, mas sim uma competência própria de decisão sobre o conteúdo das declarações negociais que, pela parte do empregador público, serão apresentadas à contraparte. Ainda assim, a mera inexistência da faculdade dos membros do Governo de dar ordens ou emitir diretivas à entidade autárquica não basta para se considerar respeitada a garantia da autonomia local. Se a Constituição limita a tutela administrativa sobre as autarquias à «verificação do cumprimento da lei», pode daí retirar-se uma conclusão mais abrangente: a rejeição constitucional de uma intervenção controladora do mérito da atuação autárquica no que respeita aos seus poderes de autonomia.

  1. A participação de membros do Governo, do mesmo lado e paritariamente à entidade autárquica, visa a definição, em conjunto, da posição negocial a adotar pelos sujeitos que unificadamente, como uma única parte contratante, contratam “pelo empregador público”. Trata-se de uma limitação da autonomia local quanto ao seu quadro de pessoal próprio, elemento da autonomia que exige o tratamento das autarquias como empregadores públicos autónomos, no âmbito dos poderes e deveres destas entidades, definidos na LTFP.

Concedida uma competência ou atribuição à autarquia, no domínio da sua autonomia, esta tem que a poder exercer em liberdade e sob sua responsabilidade, com os limites da lei. Ou seja, «a lei pode conformar, limitando, o poder de contratação coletiva no âmbito do governo autárquico. O que não é aceitável é a intervenção administrativa casuística do Estado no exercício da autonomia local» (A. Fernanda Neves, ob. cit., p. 143). A autonomia local, nos seus vários elementos descritos, só pode ser limitada por vinculações legais que o justifiquem, sob pena de não se poder falar em responsabilidade própria. A modalidade de atuação prevista na norma impugnada (a intervenção administrativa direta do Governo, face a um caso concreto, efetuando juízos de mérito) traduz uma restrição da autonomia do poder local, injustificada pelos interesses públicos em presença, violando, de modo frontal, o princípio da autonomia local previsto no artigo 6.º, n.º 1 da Constituição.

 

III – Decisão

 

 Pelo exposto, o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas que conferem aos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração pública legitimidade para celebrar e assinar acordos coletivos de empregador público, no âmbito da administração autárquica, resultantes do artigo 364.º, n.º 3, alínea b), e do n.º 6, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada em anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, por violação do princípio da autonomia local, consagrado no artigo 6.º, n.º 1, da Constituição.

Lisboa, 7 de outubro de 2015 – Maria de Fátima Mata-MourosCatarina Sarmento e CastroJoão PedroCaupersMaria José Rangel de MesquitaPedro Machete (com declaração) – Lino Rodrigues RibeiroFernando Vaz VenturaCarlos Fernandes CadilhaJoão Cura MarianoAna Guerra MartinsJoaquim de Sousa Ribeiro – Tem voto de conformidade da senhora Conselheira Maria Lúcia Amaral, que não  assina por não estar presente – Maria de Fátima Mata-Mouros.

DECLARAÇÃO DE VOTO

No respeitante ao pessoal das autarquias locais, importa distinguir entre a definição do regime jurídico a que o mesmo se encontra sujeito – o estatuto (legal e contratual de base) desse pessoal – e a sua gestão – a administração dos recursos humanos, dinamizando as relações jurídicas constituídas ao abrigo de tal regime e a utilização desses recursos em vista da prossecução das atribuições autárquicas.

Por força do princípio da unidade do regime da função pública (v. os artigos 165.º, n.º 1, alínea t), e 269, ambos da Constituição), a definição das regras aplicáveis aos funcionários e agentes da administração local não integra o âmbito das matérias próprias da autonomia local – ou, para utilizar terminologia idêntica à do presente acórdão, não é uma «dimensão ou elemento constitutivo da autonomia local» –, correspondendo antes a um domínio de atuação da comunidade nacional (cfr. o artigo 243.º, n.º 2, da Constituição).

  Todavia, se – e na medida em que o faça – a lei, nomeadamente a prevista no artigo 243.º, n.º 2, da Constituição, reconhecer às autarquias locais a possibilidade de intervir constitutivamente nesse domínio – e é isso que se verifica, aliás inovatoriamente, em relação à negociação e celebração dos acordos coletivos de empregador público, nos termos dos artigos 27.º, n.º 2, e 364.º, n.º 3, alínea b), ambos da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas –, não pode a mesma lei, sob pena de contrariar as responsabilidades inerentes ao poder de autoadministração do pessoal próprio das autarquias locais consagrado no artigo 243.º, n.º 1, da Constituição – e que é um corolário do princípio da autonomia local do artigo 6.º do mesmo normativo  –, condicionar tal intervenção em termos de codecisão ou de veto ou sujeitá-la a um qualquer tipo de controlo de mérito por parte do Governo.

Pedro Machete


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