Parecer da PGR: Responsabilidade financeira pelos encargos resultantes do internamento compulsivo de cidadãos inimputáveis decretado judicialmente ao abrigo do Código Penal


«Declaração de Retificação n.º 562/2017

Por ter sido publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 152, de 08 de agosto de 2017, o Parecer n.º 34/2016, do Conselho Consultivo com inexatidão, é republicado.

8 de agosto de 2017. – O Secretário-Adjunto da Procuradoria-Geral da República, Rui Nuno Almeida Dias Fernandes.

Parecer n.º 34/2016

Medida de segurança privativa de liberdade – Saúde mental

Recluso – Internamento – Execução de penas

1 – A aplicação de medida de segurança de internamento de inimputáveis depende, nos termos do artigo 91.º, n.º 1, do Código Penal, de sentença judicial transitada em julgado (ao abrigo das regras processuais penais) sobre a verificação dos seguintes pressupostos cumulativos:

a) Prática de um concreto ilícito típico criminal;

b) Inimputabilidade do agente no momento da prática do facto;

c) Juízo de probabilidade, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, sobre a existência de fundado receio de que o agente venha a cometer outros factos da mesma espécie.

2 – O internamento de inimputáveis ao abrigo do artigo 91.º, n.º 1, do Código Penal é configurado como uma reação criminal inconfundível com intervenções determinadas por fins terapêuticos de saúde mental que visem primariamente assegurar a prestação de cuidados de saúde ao cidadão.

3 – A natureza criminal das medidas privativas da liberdade determina que a respetiva execução seja regulada pelo Código da Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade (CEPMPL) aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro.

4 – O regime relativo ao internamento compulsivo ao abrigo da Lei de Saúde Mental tem suporte em pressupostos inconfundíveis com a aplicação das medidas de segurança previstas pelo Código Penal não sendo regulado pelo CEPMPL.

5 – As componentes administrativas e financeiras da execução das medidas de segurança de internamento de inimputáveis decretadas judicialmente ao abrigo do Código Penal devem ser asseguradas pelo Ministério da Justiça atento, nomeadamente, o disposto no artigo 2.º, alínea e), da Lei Orgânica do Ministério da Justiça aprovada pelo Decreto-Lei n.º 123/2011, de 29 de dezembro.

6 – Na organização do Ministério da Justiça a execução das medidas privativas da liberdade integra as atribuições próprias da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), nos termos dos artigos 2.º e 3.º, alínea a), da Lei Orgânica da DGRSP aprovada pelo Decreto-Lei n.º 215/2012, de 28 de setembro.

7 – Arquitetura organizacional refletida na incumbência dos serviços prisionais prevista no artigo 135.º, n.º 1, alínea a), do CEPMPL: Garantir, nos termos da lei, a execução das penas e medidas privativas da liberdade, de acordo com as respetivas finalidades reportadas à «reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a proteção de bens jurídicos e a defesa da sociedade» (nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do CEPMPL).

8 – O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é um conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e de serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde cujo objetivo é a efetivação, por parte do Estado, da responsabilidade que lhe cabe na proteção da saúde individual e coletiva, o qual funciona sob a superintendência ou a tutela do Ministro da Saúde sendo regulado, nomeadamente, pelo Estatuto do SNS aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de janeiro.

9 – O direito constitucional a ser tratado como beneficiário do SNS independentemente de estar sujeito ou não a uma medida penal privativa da liberdade decorre da universalidade do SNS consagrada no artigo 64.º, n.º 2, da Constituição.

10 – Em coerência com a universalidade do SNS, o artigo 7.º, n.º 1, alínea i), do CEPMPL prescreve de forma expressa que a execução das medidas privativas da liberdade garante ao recluso, nomeadamente, o direito de acesso ao SNS em condições idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos e o artigo 32.º, n.º 2, do CEPMPL que o recluso é, para todos os efeitos, utente do SNS.

11 – Integra as atribuições do Ministério da Justiça assegurar o financiamento da generalidade dos custos públicos inerentes ao internamento de inimputáveis condenados ao abrigo do Código Penal em medida privativa da liberdade.

12 – Incumbe, em primeira linha, à DGRSP providenciar, em articulação com os competentes serviços públicos das áreas da saúde, pelo efetivo exercício do direito de acesso do recluso ao SNS em condições idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos, nos termos das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 7.º do CEPMPL.

13 – A circunstância de a medida de segurança privativa de liberdade ser cumprida em unidade de saúde mental não prisional, ao abrigo do artigo 126.º, n.º 2, do CEPMPL, não altera a respetiva natureza penal nem, salvo norma expressa em sentido contrário, a consequente responsabilidade da DGRSP pela dimensão administrativa da respetiva execução.

14 – A complexidade das questões interorgânicas envolvidas na repartição de responsabilidades pelas tarefas administrativas e financeiras relativas ao cumprimento de medidas privativas da liberdade em unidade de saúde mental deve ser objeto de regulação em diploma próprio previsto no artigo 126.º, n.º 5, do CEPMPL.

15 – Enquanto não for publicado o diploma próprio previsto no artigo 126.º, n.º 5, do CEPMPL, os encargos decorrentes da específica situação de reclusão de inimputáveis que cumprem medida de segurança privativa da liberdade em unidade de saúde mental e de imputáveis que cumprem pena nesse tipo de instituições subsistem abrangidos pela responsabilidade dos serviços prisionais enquanto departamento estadual que deve garantir, nos termos da lei, a execução das penas e medidas privativas da liberdade de acordo com as respetivas finalidades.

16 – Sem prejuízo das conclusões anteriores, os encargos relativos à prestação de cuidados de saúde por instituições do SNS a reclusos integram os custos de financiamento do SNS e, salvo acordo de cooperação em sentido contrário das entidades envolvidas, não podem ser reclamados ao Ministério da Justiça na parte em que quanto a utentes do SNS em liberdade devessem ser suportados por esse sistema público de saúde.

17 – A complexidade das questões interorgânicas envolvidas na repartição de responsabilidades pelas tarefas administrativas e financeiras necessárias para assegurar o acesso e a prestação de cuidados de saúde aos reclusos cujo cumprimento de medidas privativas da liberdade decorre em estabelecimento prisional deve ser objeto de regulação por diploma próprio previsto no artigo 32.º, n.º 3, do CEPMPL, o qual, contudo, ainda não foi publicado.

Este parecer foi votado na sessão do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 2 de março de 2017.

Maria Joana Raposo Marques Vidal – Paulo Joaquim da Mota Osório Dá Mesquita (Relator) – Eduardo André Folque da Costa Ferreira – Maria de Fátima da Graça Carvalho – Fernando Bento – Maria Manuela Flores Ferreira – João Eduardo Cura Mariano Esteves – Maria Isabel Fernandes da Costa – Vinício Augusto Pereira Ribeiro – Francisco José Pinto dos Santos – Amélia Maria Madeira Cordeiro.

Senhora Secretária de Estado Adjunta e da Justiça

Senhor Secretário de Estado da Saúde

Excelências:

I. Relatório

A consulta foi determinada por despacho de Suas Excelências a Senhora Secretária de Estado Adjunta e da Justiça e o Senhor Secretário de Estado da Saúde sobre responsabilidade financeira pelos encargos resultantes do internamento compulsivo de cidadãos inimputáveis decretado judicialmente ao abrigo do Código Penal(1).

Cumpre emitir parecer(2).

II. Fundamentação

§ II.1 Objeto do parecer e enquadramento metodológico

A questão objeto de consulta foi colocada pelos membros do Governo competentes ao abrigo do disposto no artigo 37.º, alínea a), do Estatuto do Ministério Público (EMP).

A consulta visa a pronúncia sobre uma questão jurídico-prática no quadro funcional da Administração Pública.

As entidades consulentes identificam a dúvida objeto da consulta, tendo a questão sido «enunciada»(3) nos seguintes termos:

«Definir qual o Ministério financeiramente responsável pelos encargos decorrentes do internamento compulsivo de inimputáveis decretado judicialmente ao abrigo do Código Penal, se o Ministério da Saúde ou o Ministério da Justiça»(4).

De seguida, passaram a ser sintetizadas as «perspetivas» divergentes do Ministério da Saúde (artigos 13 a 25) e do Ministério da Justiça (artigos 26 a 32).

Embora na apresentação do problema e na síntese da argumentação relativa à «perspetiva do Ministério da Saúde» também seja referida a problemática do internamento ao abrigo da Lei de Saúde Mental (sobre o respetivo regime cf. infra § II.2.2), a questão enunciada reporta-se exclusivamente ao internamento de «inimputáveis» decretado «ao abrigo do Código Penal» (diploma que, neste segmento, apenas regula as medidas de segurança, cf. infra § II.2.1), e a condição de inimputável apenas releva para efeito de aplicação dessas medidas (sendo conceito estranho à Lei de Saúde Mental).

Acrescente-se que no plano da execução das medidas o único regime legal referenciado nas duas perspetivas divergentes é o do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade (cf. infra § II.3)(5).

A única documentação de suporte da consulta foi a fundamentação da consulta subscrita por Suas Excelências a Senhora Secretária de Estado Adjunta e da Justiça e o Senhor Secretário de Estado da Saúde.

Sendo o parecer conformado pela teleologia e balizas da dúvida suscitada pelas entidades consulentes, a ponderação necessária para as respostas deve ser objeto de análise própria pelo Conselho Consultivo na fundamentação que se segue. Plano em que se deve realçar um outro aspeto: A consulta que originou este parecer visa um comando relativo a condições de ação e não a objetivos, o que obrigatoriamente determina o trabalho a empreender pelo Conselho Consultivo, na medida em que se deve, em sintonia com a vocação técnica deste ente consultivo, cingir às pautas de interpretação do direito positivo.

A estrutura do parecer vai ser determinada pelo escopo da consulta e pautas acabadas de expor, desdobrando-se pelas seguintes duas partes:

§ II.2 Regime sobre aplicação de medidas de segurança e internamento de inimputáveis decretadas judicialmente ao abrigo do Código Penal;

§ II.3 As responsabilidades administrativas pela execução de medidas de segurança privativas da liberdade.

Depois da fundamentação serão enunciadas as conclusões do parecer visando responder à questão colocada na consulta.

§ II.2 Regime sobre aplicação de medidas de segurança e internamento de inimputáveis decretadas judicialmente ao abrigo do Código Penal

§ II.2.1 A consulta tem como objeto um problema específico sobre a definição do «ministério financeiramente responsável pelos encargos decorrentes do internamento compulsivo de inimputáveis decretado judicialmente ao abrigo do Código Penal».

Questão que exige uma referência, ainda que sintética, ao regime substantivo sobre as medidas de segurança no direito penal português. Esse regime tem na base o conceito de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica regulado no artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal (CP) que, seguindo a perspetiva do presidente da comissão revisora Eduardo Correia(6), adotou o método misto biopsicológico-normativo, estabelecendo que «é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação». Conceito ampliado no n.º 2 do artigo 20.º, pois pode abranger, ainda, «quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída»(7).

Relativamente a uma das questões controversas na doutrina penalista, a lei portuguesa adotou um conceito de inimputabilidade amplo, abrangendo a inimputabilidade acidental. Inimputabilidade suscetível de ser determinada por fatores exógenos, nomeadamente, se por força do consumo de estupefacientes o agente «for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação», com os limites inerentes à adoção legal da teoria sobre actio libera in causa(8).

Por outro lado, a inimputabilidade reporta-se de forma atomizada ao(s) momento(s) da prática(s) do(s) factos(s) individualizadamente considerado(s)(9).

Inimputabilidade que exime o autor ou comparticipante do crime de uma pena mas não equivale à ausência de reação criminal relativamente ao comportamento do agente que preenche o facto ilícito típico.

O princípio da legalidade da lei criminal em Portugal abrange duas tipologias de reações criminais reconhecidas, desde logo, no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição: «Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior»(10).

Medidas de segurança de internamento aplicáveis a inimputáveis reguladas no artigo 91.º, n.º 1, do CP: «Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.»

Medidas teleologicamente conformadas por necessidades de prevenção especial e pelos interesses públicos de segurança e tutela do ordenamento jurídico(11), que, de acordo com a fórmula legal, compreendem os seguintes requisitos cumulativos:

a) Prática de um concreto ilícito típico criminal;

b) Inimputabilidade do agente;

c) Juízo de probabilidade positivo sobre a existência fundado receio de que o agente venha a cometer outros factos da mesma espécie por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado.

Medidas de segurança em que o princípio da proporcionalidade tem incidência na perigosidade criminal do agente e consequente ponderação da concreta medida, a dimensão criminal da medida de segurança e a sua proximidade com a pena como consequência jurídica do crime reflete-se, nomeadamente, na sua conexão com o facto e a tutela da respetiva gravidade ao nível da lei penal(12).

Implicações que revelam a operatividade nesta sede do princípio da tipicidade penal, comunhão de exigências expressamente referida pelo artigo 29.º, n.º 1, da Constituição: Ninguém pode sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior. Constitucionalização dos limites à aplicação das medidas de segurança enquanto reações criminais que implica a proibição de se aplicarem medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior (artigo 29.º, n.º 3) e que ninguém possa sofrer medida de segurança mais grave do que a prevista no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos (artigo 29.º, n.º 4), valendo também neste domínio o princípio da aplicação retroativa das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido (artigo 29.º, n.º 4).

Dimensão criminal também revelada nas referências abstratas delimitadoras da duração concreta do internamento reportadas às molduras das penas criminais(13) na reserva judicial sobre a cessação da medida e respetivos parâmetros de avaliação do término do internamento, prescrevendo-se que o internamento finda quando o tribunal verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem(14).

Medidas de segurança objeto de uma reserva judicial que abrange o respetivo decretamento (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição) e a suscetibilidade da respetiva prorrogação, nomeadamente, em caso de perigosidade baseada em grave anomalia psíquica, e na impossibilidade de terapêutica em meio aberto, admitindo-se que as medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade possam ser prorrogadas sucessivamente enquanto tal estado se mantiver, mas sempre mediante decisão judicial (nos termos do artigo 30.º, n.º 2, da Constituição).

§ II.2.2 A questão suscitada na consulta circunscreve-se ao internamento de inimputáveis ao abrigo do Código Penal, estando excluída a problemática do internamento compulsivo por objetivos relativos à saúde mental do internando(15).

A Lei de Saúde Mental (LSM) aprovada pela Lei n.º 36/98, de 24 de julho(16), reporta-se a uma matéria distinta do internamento de inimputáveis regulado pela lei penal. A prática de um ilícito penal não constitui pressuposto do internamento compulsivo regulado na LSM, o seu decretamento não depende de qualquer juízo sobre a prática de factos ilícitos típicos, e a prevenção criminal não constitui um elemento necessário das medidas aí previstas às quais é estranho o conceito inimputabilidade no momento da ocorrência de determinados factos.

Com efeito, como se prescreve na alínea a) do artigo 7.º da LSM, o pressuposto base do internamento ao abrigo desse diploma é a anomalia psíquica, definindo-se o internamento compulsivo nesse quadro como «internamento por decisão judicial do portador de anomalia psíquica grave».

Dimensão clínica que conforma o decretamento do internamento compulsivo (que «só pode ser determinado quando for a única forma de garantir a submissão a tratamento do internado») e a sua cessação (devendo o internamento findar «logo que cessem os fundamentos que lhe deram causa», nos termos do artigo 8.º, n.º 1, da LSM). Sem embargo, enquanto medida restritiva da liberdade, o internamento compulsivo tem de compreender um juízo de proporcionalidade conformado pela proibição do excesso, à luz do artigo 18.º da Constituição(17).

Lei de Saúde Mental de 1998 que veio introduzir um regime sobre internamento compulsivo conformado pelo texto constitucional, em substituição do consagrado no quadro da Constituição de 1933 pela Base XXIV da Lei n.º 2118, de 3 de abril de 1963(18), subsistindo a sua regulação como matéria diferenciada das reações criminais.

Na LSM de 1963 o pedido de admissão para internamento em regime fechado era «dirigido ao centro de saúde mental do domicílio do internando ou, na sua falta, ao da residência, exceto quando razões ponderosas, devidamente comprovadas, justifiquem a escolha doutro centro». Diploma que prescrevia no n.º 2 da Base XXIV que «quando o pedido respeitar a estabelecimento oficial, o centro autorizará o internamento se o entender justificado, mas deverá submeter a sua decisão a confirmação do tribunal de comarca; quando o pedido respeitar a estabelecimento particular, o centro dará o seu parecer e, se este for favorável, remeterá o processo ao tribunal da comarca para concessão da necessária autorização».

Existindo dúvidas sobre a conformidade constitucional da LSM 1963 em matéria de internamentos compulsivos, a constitucionalização dos internamentos autónomos da prática de ilícitos compreendeu um primeiro passo na revisão de 1997 da Constituição que passou a admitir de forma expressa «a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar» relativo ao «internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente» (artigo 27.º, n.º 3, alínea h), da Constituição).

Reserva de juiz na aplicação de decisões de internamento de indivíduos portadores de anomalia psíquica independente da prática de qualquer facto ilícito típico. Consequentemente, o internamento ao abrigo da LSM apresenta-se estrutural e teleologicamente distinto das medidas de segurança aplicáveis a inimputáveis que, tal como as penas, têm como pressuposto necessário «sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança» (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição).

Nessa medida, o artigo 30.º da Constituição sobre Limites das penas e das medidas de segurança é sistemática e teleologicamente independentemente do regime sobre internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, o qual foi objeto de reenvio dinâmico para a legislação ordinária, pela norma da alínea h), do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição.

Separação de águas sublinhada no Acórdão n.º 674/98 do Tribunal Constitucional:

«Note-se, antes de mais, que no caso sub iudice não está em causa a aplicação de uma verdadeira medida de segurança.

«Enquanto a medida de segurança se liga à prática, pelo agente, de um facto ilícito típico e tem primacialmente uma função de defesa social ligada à prevenção especial, seja sob a forma de pura segurança, seja sob a forma de ressocialização (Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal português. As consequências jurídicas do crime, 1993, §§ 653 e 667 e segs.), o que no presente processo sempre esteve em causa foi uma providência, de caráter estritamente terapêutico, de defesa do requerido. Uma tal teleologia descaracterizava a intervenção em causa como medida de segurança, podendo dizer-se que a aproximava, antes, de um processo como o de internamento (transitório) previsto no n.º 4 do artigo 951.º do Código de Processo Civil, ou, mesmo, em certos aspetos, de suprimento do consentimento do requerido, regulado no artigo 1426.º do mesmo diploma.

«Ora, poderia discutir-se se a privação de liberdade em consequência de internamento compulsivo de doente mental era permitida em face do texto constitucional anterior à revisão constitucional de 1997, havendo esta discussão de passar pela determinação do âmbito de aplicação do princípio consagrado no n.º 2 do artigo 27.º da Constituição (segundo o qual “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”) e pelo reconhecimento ou negação da taxatividade das exceções a esse princípio, indicadas no n.º 3 do mesmo artigo 27.º E consoante a resposta, assim haveria que concluir pela conformidade ou desconformidade constitucional das normas em apreço, que permitem o internamento hospitalar compulsivo do requerido para sujeição a tratamento.»

Nesse aresto, que constituiu a primeira pronúncia sobre a conformidade constitucional do internamento compulsivo ao abrigo da Lei de Saúde Mental de 1963, o Tribunal Constitucional teve oportunidade de se suportar já no texto constitucional revisto em 1997 para concluir:

«Esta exceção quadra perfeitamente ao internamento hospitalar compulsivo do requerido, para sujeição a tratamento, bastando para se poder concluir que as normas conjugadas e constantes das Bases XX, XXIII, n.os 2 e 3, alíneas a) e d) e XXX da Lei n.º 2118, de 3 de abril de 1963 (Lei da Saúde Mental), não podem ser consideradas inconstitucionais (isto deixando, portanto, em aberto a questão – que não parece resolvida pela nova alínea h) do n.º 3 do artigo 27.º, e, sobretudo, não interessa no caso vertente – de saber se normas que prevejam o internamento compulsivo por motivos diversos da anomalia psíquica são ou não inconstitucionais).»

Quadro constitucional conformador da LSM de 1998 que, atenta a dimensão restritiva da liberdade e o artigo 18.º da Constituição, sublinha o caráter subsidiário e a necessidade da medida de internamento compulsivo, e, como sublinhou José Carlos Vieira de Andrade, «ao defini-la como a ultima ratio, uma intervenção para tratamento que só em último caso pode ser utilizada, ao mesmo tempo que assegura a sua adequação e proporcionalidade, respetivamente, em função do grau de perigo e em função da importância do valor ameaçado»(19).

LSM que compreende um procedimento decisório complexo em que o decretamento da medida exige um consenso médico e judicial sobre a sua necessidade e adequação. Não pode haver internamento sem decisão ou, pelo menos confirmação (no caso de urgência), judicial, contudo, o internamento judicial tem de ser precedido do que se pode configurar como «uma “pré-decisão” médica» por força do artigo 18.º da LSM, dessa norma resulta que «não pode haver internamento compulsivo sem que dois psiquiatras dos serviços oficiais de assistência o considerem adequado»(20).

Em termos jurídico-constitucionais apresentava-se admissível que o controlo judicial dos internamentos compulsivos necessariamente derivados de decisão médica fosse estabelecimento como ato prévio ou posterior ao ato de internamento, tendo o legislador de 1998 optado pela primeira das alternativas(21).

A LSM de 1998 estabelece regras sobre direito subsidiário em que, nomeadamente, se deu prevalência à dimensão restritiva da liberdade das medidas carecidas de decisão judicial. Sem embargo, a subsidiariedade do processo penal não altera a autonomia do procedimento e, fundamentalmente, do direito substantivo relativo ao internamento compulsivo ao abrigo da LSM. Isto é, como lembra Figueiredo Dias, o internamento regulado na LSM é «uma medida administrativa integrada por um princípio de judicialidade»(22).

Autonomia relativamente ao direito criminal substantivo e adjetivo conformada pela dimensão clínica do internamento compulsivo ao abrigo da LSM, a qual conforma as devidas adaptações da aplicação subsidiária do CPP. Aplicação subsidiária justificada, apesar da diferença dos fins prosseguidos, pela dimensão comum de tutela de direitos, liberdades e garantias dos visados, sendo certo que a LSM é autónoma da política criminal e visa fins terapêuticos – tal como a aplicação subsidiária de regras do processo penal ao procedimento disciplinar preserva a autonomia dos fins prosseguidos e da natureza dos procedimentos(23).

Existe uma diferença estruturante e de raiz entre a medida de segurança de internamento, que constitui uma reação criminal de natureza judicial, e o internamento compulsivo da LSM, que pode ser qualificado como uma medida assistencial de natureza administrativa(24), ainda que dependente de autorização judicial.

Dimensão clínica prevalente na LSM com expressão nas regras de competência territorial, em que o critério determinante é a residência do internado sendo competente, nos termos do artigo 30.º, n.º 1, da LSM, «o tribunal judicial de competência genérica da área de residência do internado». Prevalência da dimensão clínica que conforma a própria alteração de competência judicial, conformada pelo designado processo clínico(25).

Determinada a autorização judicial do internamento, enquanto medida da reserva de juiz por força da restrição da liberdade do doente envolvida, os procedimentos supervenientes à decisão judicial de internamento são conformados não só pela prevalência da dimensão clínica como ainda da decisão médica sobre a cessação do internamento quando os clínicos considerem que deve haver lugar a substituição do internamento pelo tratamento em regime de ambulatório ou alta do internado (artigos 33.º e 34.º da LSM). Em particular, como destacam António João Latas/Fernando Vieira, a decisão de substituição do internamento compulsivo pelo tratamento compulsivo em regime ambulatório «é exclusivamente médica»(26).

Especificidade processual da LSM derivada da diferença substantiva entre os fins do internamento compulsivo de portadores de anomalia psíquica e as finalidades da medida de segurança de internamento (supra § II.2.1). Relativamente ao internamento compulsivo regulado na LSM, a finalidade é terapêutica enquanto «forma de garantir a submissão a tratamento do internado», como se refere no artigo 8.º, n.º 1, da LSM, devendo, consequentemente, findar «logo que cessem os fundamentos que lhe deram causa». Relativamente à perigosidade enquanto requisito do internamento compulsivo, como sublinha Pedro Soares Albergaria, constitui «mera condição de legitimidade da intervenção estatal»(27).

§ II.2.3 Retornando às medidas de segurança privativas da liberdade de inimputáveis a sua dimensão penal é preservada ao nível do direito processual, devendo, em sintonia, com a tutela constitucional adjetiva dessas medidas, as quais devem ser aplicadas no quadro do processo penal comum.

Modelo constitucional que conformou o fim do incidente de anomalia psíquica no Código de Processo Penal de 1987 (CPP), à luz de uma ideia matricial no sentido de que a questão da inimputabilidade «tem de ser posta e decidida no próprio processo do facto»(28).

Sistema em que compete ao Ministério Público formular, em primeira linha, um juízo sobre a culpa concreta do arguido e, designadamente, sobre a sua imputabilidade, na fase de inquérito (em face, nomeadamente, da prova pericial sobre a anomalia psíquica).

Caso existam indícios suficientes de crimes públicos e/ou semipúblicos ou de quem foram os seus agentes, na fase de inquérito compete ao Ministério Público formular um juízo sobre a culpa concreta do arguido e, designadamente sobre a sua imputabilidade(29). Pois se o Ministério Público concluir que em face dos indícios obtidos o agente atuou numa situação de inimputabilidade por força de anomalia psíquica deve averiguar se no caso existe uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma medida de segurança, acusando ou arquivando consoante a conclusão seja afirmativa ou negativa(30).

Se o Ministério Público entende que existem indícios suficientes que fundamentam a aplicação de uma medida de segurança ao arguido é deduzida acusação sob a forma de processo comum, onde, nomeadamente, ao fixar o objeto processual, se tenha presente a exigência de nexo causal entre a anomalia psíquica e a gravidade do facto e a perigosidade da prática de factos da mesma espécie, tendo presentes os pressupostos estabelecidos pelo artigo 91.º, n.º 1, do CP(31).

Em sede de julgamento o tribunal vai apreciar, de acordo com as regras processuais penais e a estrutura acusatória do processo, a imputabilidade do arguido na prática dos factos objeto do processo e, caso conclua pela prova do facto ilícito típico e da inimputabilidade do arguido no momento da sua prática, deve julgar sobre a verificação dos pressupostos penais para aplicação de medida de segurança privativa da liberdade (supra § II.2.1).

Refira-se, por fim, que a possibilidade de o tribunal de julgamento do crime concluindo pela inaplicabilidade de medida de segurança decidir o internamento compulsivo da pessoa visada, ao abrigo do artigo 29.º, n.º 1, da LSM, não descaracteriza esta decisão como não penal. Enxertado no processo penal esse procedimento decisório regulado pela LSM, o mesmo tem de se conformar com a autonomia médica no juízo realizado ao abrigo do artigo 18.º da LSM e na avaliação da subsequente execução do tratamento e cessação do internamento nos termos dos artigos 33.º e 34.º da LSM, nomeadamente, na substituição do internamento por regime de ambulatório e na decisão sobre a alta do paciente (supra § II.2.2). Possibilidade de enxerto no processo penal de um internamento compulsivo ao abrigo da LSM conformada, nomeadamente, pela conexão subjetiva e princípio da economia processual, fatores que não descaracterizam a natureza administrativa do internamento (tal como o enxerto da ação civil ao abrigo do princípio da adesão não coloca em causa a respetiva natureza civil)(32).

§ II.3 As responsabilidades administrativas pela execução de medidas de segurança privativas da liberdade

§ II.3.1 As medidas de segurança privativas da liberdade integram a justiça penal.

Por regra, a problemática incidente em termos de repartição de competências estaduais ao nível da execução de penas e medidas privativas de liberdade tem como epicentro a separação entre justiça e executivo.

Nesse domínio este Conselho Consultivo emitiu o parecer n.º 104/90, de 21 de fevereiro de 1991(33), no sentido de a decisão sobre a concessão da licença de saída do estabelecimento prevista no artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de agosto, não se integrar no âmbito constitucional da reserva da função jurisdicional definido no artigo 202.º, n.º 2, da Constituição e de não ser inconstitucional, por violação do princípio da reserva da função jurisdicional, a norma do artigo 49.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 265/79 que atribuía à Direção-Geral dos Serviços Prisionais a competência para conceder a licença prevista no artigo 58.º daquele diploma.

Parecer n.º 104/1990 proferido há cerca de um quarto de século onde se destacou que o «juiz de execução das penas, instância judicial de controlo de execução das reações criminais, constitui, no momento atual de evolução da instituição, mais do que um magistrado que acompanhe a fase de execução, designadamente das medidas privativas de liberdade, um sistema judicial de defesa do estatuto do recluso, permitindo-lhe, quando se sinta prejudicado, recorrer a uma instância protetora dos seus direitos, e, nesta mesma perspetiva de proteção, decidir das modificações ou alterações relevantes e essenciais no estatuto jurídico do recluso durante a execução da medida»(34).

Sem embargo, no parecer n.º 104/1990 também se assinalou a margem de decisão legislativa no domínio da execução das reações criminais em que a lei pode, dentro dos limites constitucionais, judicializar em maior ou menor grau certas fases ou momentos de execução. Destacando-se na primeira conclusão desse parecer que «a execução das medidas privativas de liberdade que, nos termos do artigo 42.º do Código Penal é objeto do diploma próprio – o Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de agosto -, está a cargo dos serviços da Administração especialmente constituídos para desempenhar esta função».

§ II.3.2 O Código da Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade (CEPMPL) aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro(35), em sintonia com as coordenadas acima destacadas sobre a integração das medidas de segurança na justiça, atribui a responsabilidade administrativa pela respetiva execução à DGRSP organismo integrado no Ministério da Justiça(36).

Sobre a repartição de competências ao nível interno do poder executivo, ressalta como primeira coordenada que a Constituição portuguesa «não individualiza o ministro da justiça que se apresenta, assim, apenas como um ministro do governo com uma determinada reserva de competências»(37).

Passando ao direito ordinário, o Ministério da Justiça (MJ), é configurado pela respetiva Lei Orgânica (LOMJ) aprovada pelo Decreto-Lei n.º 123/2011, de 29 de dezembro(38), como o departamento governamental cuja missão compreende «a conceção, condução, execução e avaliação da política de justiça definida pela Assembleia da República e pelo Governo» (artigo 1.º, n.º 1, da LOMJ).

Quadro em que se atribui a esse ministério a responsabilidade administrativa pela execução das medidas de segurança privativas da liberdade, incluindo a respetiva componente financeira. Ministério da Justiça cujas atribuições envolvem o assegurar dos mecanismos adequados de execução das medidas penais privativas e não privativas de liberdade, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º da LOMJ. Competindo atualmente a direção desses serviços à Ministra da Justiça do XXI Governo Constitucional (artigo 17.º, n.º 2, da Lei Orgânica do XXI Governo Constitucional aprovada pelo Decreto-Lei n.º 251-A/2015 de 17 de dezembro), direção que constitui matéria estranha à competência do Ministro da Saúde (atento o disposto no artigo 23.º do mesmo diploma)(39).

Na organização interna do Ministério da Justiça a execução das medidas privativas da liberdade integra as atribuições próprias da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) – cf. artigos 2.º e 3.º, alínea a), da Lei Orgânica da DGRSP (LODGRSP) aprovada pelo Decreto-Lei n.º 215/2012, de 28 de setembro. Existindo no âmbito da DGRSP uma Direção de Serviços de Execução de Medidas Privativas da Liberdade (DSEMPL), prevista no artigo 1.º, n.º 1, alínea a), Portaria n.º 118/2013, de 25 de março.

Arquitetura organizacional coerente com a incumbência dos serviços prisionais prevista no artigo 135.º, n.º 1, alínea a), CEPMPL, enquanto entidade com a responsabilidade administrativa de garantir, nos termos da lei, a execução das penas e medidas privativas da liberdade de acordo com as respetivas finalidades.

§ II.3.3 Chegados ao presente passo, temos como assente um pressuposto de base incontornável: A execução da medida de segurança privativa da liberdade integra-se, no plano administrativo, nas atribuições relativas à justiça penal. Essa constatação, à partida, deveria implicar que os respetivos encargos, salvo norma especial em sentido contrário, deveriam ser assegurados pelas entidades responsáveis pela dimensão administrativa e financeira da execução das penas e medidas privativas da liberdade, corolário lógico que se apresente em sintonia com o que se encontra prescrito no artigo 135.º, n.º 1, alínea a), do CEPMPL.

Contraposta a essa base é indiciada uma ideia de conexão entre os internamentos clínicos do paciente que sofre de anomalia psíquica e o «internamento de inimputáveis nos termos do Código Penal», ao abrigo da ideia de que «através do internamento sujeita-se o tratamento médico no sentido de restabelecer o reequilíbrio psíquico do mesmo»(40).

A ênfase na componente médica da inimputabilidade, para associar o cumprimento de medida de segurança imposta por um tribunal na sequência de um julgamento penal aos internamentos por razões de saúde mental, não altera a responsabilidade legal dos departamentos do MJ pela respetiva execução e a autonomia entre os dois procedimentos e regimes.

As medidas de segurança privativas da liberdade têm como pressuposto, a prática do crime, a inimputabilidade no momento do crime e a perigosidade criminal do agente (conexa com a gravidade do crime cometido e a anomalia psíquica) sendo inconfundíveis com medidas administrativas com fins médico-terapêuticos (supra § II.2.2).

Acrescente-se que o próprio conceito de inimputabilidade é estranho à intervenção estadual para finalidades médico-assistenciais (supra § II.2.2). A inimputabilidade por anomalia psíquica constitui um conceito jurídico-penal (supra § II.2.1), e a especificidade de uma intervenção de peritos médicos no julgamento reporta-se, apenas, à existência de uma prova legal no sentido de se exigir a perícia quanto a um dos elementos necessários para o preenchimento do conceito, a anomalia psíquica. Tal ponto não determina a transferência do poder judicial para os médicos, significando, apenas, que a lei não considera as perceções humanas uma fonte fiável para a prova desse tipo de factos, dada a respetiva especificidade, exigindo-se prova pericial como base do juízo do tribunal, isto é, a prova científica constitui um meio taxativo para serem produzidas inferências judiciais sobre anomalia psíquica(41).

Anomalia psíquica que constitui o substrato biopsicológico da inimputabilidade a qual depende, ainda, de um elemento normativo, a incapacidade de o agente avaliar, no momento da prática do facto, a ilicitude deste ou de se orientar de acordo com essa avaliação (supra § II.2.1), o qual também tem de ser integrado no juízo judicial.

No resumo das posições divergentes na origem da presente consulta refere-se, a dado passo, «que na perspetiva do Ministério da Justiça o fundamento do internamento é, antes de mais, a necessidade de assegurar a prestação de cuidados de saúde ao cidadão, sendo a aplicação da medida de segurança (restrição da Liberdade) meramente instrumental daquele objetivo maior». Essa perspetiva colide com o enquadramento penal das medidas de segurança e os pressupostos jurídicos da sua aplicação, em particular a prática de facto ilícito típico grave e a perigosidade do agente. Privação da liberdade que é conformada pela gravidade do ilícito criminal (cujos tipos objetivo e subjetivo têm de se encontrar preenchidos) e legitimada pela referida dimensão penal(42).

A execução das medidas de segurança privativas da liberdade que, nos termos do disposto pelo artigo 2.º, n.º 1, do CEPMPL, visa «a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a proteção de bens jurídicos e a defesa da sociedade», finalidades inconfundíveis com um estrito programa de prestação e cuidados de saúde à pessoa provada da liberdade.

Em síntese, o fundamento do internamento relativo a execução de medidas de segurança privativas da liberdade previstas no Código Penal não é, ao contrário do que sucede com os internamentos compulsivos da LSM, a necessidade de assegurar a prestação de cuidados de saúde ao cidadão(43).

§ II.3.4 A problemática da eventual responsabilidade do Ministério da Saúde pelos encargos relativos ao internamento de inimputáveis foi equacionada na consulta tendo por referência o Serviço Nacional de Saúde (SNS). No resumo da perspetiva do Ministério da Justiça é referido, nomeadamente, que essa entidade «entende que todas as despesas decorrentes do internamento compulsivo de inimputáveis em unidades de psiquiatria do SNS, constituem responsabilidade do Ministério da Saúde, na medida em que aqueles são utentes do SNS».

Invocada a qualidade de utente do SNS do recluso importará atender à base constitucional do SNS e respetivas atribuições na ordem jurídica portuguesa.

De acordo com as coordenadas constitucionais de 1976, o «direito à proteção da saúde» é «realizado», nos termos artigo 64.º, n.º 2, da Constituição «através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito».

O financiamento da prestação de cuidados de saúde realizados pelas unidades prestadoras de saúde do SNS, além do direto comando constitucional, encontra-se previsto na Lei de Bases da Saúde aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de agosto(44). Na redação originária do n.º 1 da Base XXXIII prescrevia-se que o SNS é financiado pelo Orçamento do Estado. Preceito revisto pela Lei n.º 27/2002 que passou a prescrever que «o Serviço Nacional de Saúde é financiado pelo Orçamento do Estado, através do pagamento dos atos e atividades efetivamente realizados segundo uma tabela de preços que consagra uma classificação dos mesmos atos, técnicas e serviços de saúde»(45).

Inalterada desde 1990 subsiste a alínea b) do n.º 2 da Base XXXIII, a qual dispõe que os serviços e estabelecimentos do SNS podem cobrar como receitas, a inscrever nos seus orçamentos próprios o pagamento de cuidados por parte de terceiros responsáveis, legal ou contratualmente.

Desta forma, a pessoa coletiva responsável pelo financiamento relativo à execução das penas e medidas de segurança e do SNS é a mesma, o Estado. Por outro lado, nada obsta a que o SNS cobre o pagamento de prestação de serviços abrangidos pela responsabilidade de outras entidades.

O direito constitucional a ser tratado como beneficiário do SNS, constitui uma coordenada constitucional implicada pela universalidade do SNS, isto é, um serviço «dirigido à generalidade dos cidadãos»(46).

Embora exista um reenvio dinâmico para a lei ordinária na concretização do direito constitucional, o legislador está vinculado a comandos constitucionais, como se destaca no Acórdão n.º 731/95 do Tribunal Constitucional: «A universalidade confere a todos o direito de recorrer ao SNS, não impedindo naturalmente a existência e o recurso aos serviços particulares de saúde. A generalidade traduz a necessidade de integração de todos os serviços e prestações de saúde»(47).

Pelo que, independentemente da específica regulação dos direitos e deveres dos reclusos no CEPMPL, à partida, a privação da liberdade em virtude da execução de reação criminal não poderia privar o cidadão da categoria de beneficiário do SNS, que abrange, nomeadamente, «todos os cidadãos portugueses», nos termos do n.º 1 da Base XXV da Lei de Bases da Saúde(48), na concretização do comando constitucional sobre a universalidade do SNS.

§ II.3.5.1 Relativamente aos cidadãos sujeitos a medida penal privativa da liberdade constitui, em primeira linha, incumbência dos serviços prisionais assegurar, em articulação com os competentes serviços públicos das áreas da saúde, o efetivo exercício do direito de acesso ao SNS dos reclusos em condições idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos, nos termos das disposições conjugadas do artigo 7.º, n.º 1, alínea i), e do artigo 32.º, n.º 2, do CEPMPL.

Importa, ainda, ter presente que, como se destaca no Manual do projeto Dos Princípios à Prática da Reforma Penal Internacional no quadro das Nações Unidas «a saúde física e mental dos reclusos é o aspeto mais vital assim como o mais vulnerável da vida num estabelecimento prisional»(49), integrando uma responsabilidade primacial dos serviços prisionais, em particular no quadro multipolar dos vários interfaces envolvidos na intervenção em saúde mental de reclusos(50).

Direitos que decorrem de imperativos constitucionais em que, para além do já referido princípio da universalidade do SNS, ressalta a prescrição do artigo 30.º, n.º 5, da Constituição no sentido de que os condenados a quem sejam aplicadas medida de segurança privativas da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respetiva execução.

Em coerência, relativamente à proteção da saúde do recluso durante o cumprimento da medida de segurança privativa em estabelecimento prisional é prescrito que ao recluso deve ser garantido o acesso a cuidados de saúde em condições de qualidade e de continuidade idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos (artigo 32.º, n.º 1, do CEPMPL), que, para todos os efeitos, é utente do SNS (artigo 32.º, n.º 2, do CEPMPL).

Coordenada geral que, além de ser objeto de desenvolvimento no Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais (RGEP), carece de regulação em diploma próprio, conforme é expressamente prescrito no n.º 3 do artigo 32.º do CEPMPL.

Aprovado o RGEP pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 51/2011, de 11 de abril, decorridos mais de sete anos sobre a publicação do CEPMPL ainda não foi publicado o diploma próprio sobre a forma como deve ser assegurado o acesso e a prestação de cuidados de saúde aos reclusos onde deve ser tratada a resolução das questões carecidas de regulação ao nível da interação do sistema prisional com o SNS.

De qualquer modo, enquanto não for aprovado o referido diploma próprio subsiste a responsabilidade primária dos serviços prisionais, diretamente estabelecida na legislação sobre execução de medidas de segurança privativas da liberdade. Podendo, enquanto não for publicado o diploma próprio, «ainda existir estabelecimentos prisionais ou unidades de natureza hospitalar ou destinados à prestação de cuidados especiais de saúde, nomeadamente saúde mental, bem como destinados a inimputáveis ou a imputáveis internados, por decisão judicial, em estabelecimento destinado a inimputáveis, quando estes não devam ser internados em unidade de saúde mental não prisional», nos termos artigo 9.º, n.º 4, do CEPMPL.

Desta forma, o CEPMPL não abre espaço para diluição das responsabilidades dos serviços prisionais relativamente aos reclusos, inclusive quando sujeitos a internamento hospitalar não prisional que depende de autorização de responsáveis inseridos na orgânica da DGRSP (ao abrigo do artigo 34.º, n.º 3, do CEPMPL(51) e cuja vigilância tem de ser garantida pelos serviços prisionais (nos termos do artigo 34.º, n.º 4, do CEPMPL).

Sendo o recluso (a cumprir pena ou medida de segurança em estabelecimento prisional) internado em unidade de saúde do SNS para receber cuidados de saúde, na parte em que o internamento se reporta à referida necessidade clínica é abrangido pelas atribuições próprias do SNS, devendo o recluso ser tratado como utente desse sistema (estando os profissionais médicos ao serviço do SNS habilitados para avaliar a situação médica e determinar a respetiva alta, constituindo obrigação dos serviços prisionais assegurarem a prática dos atos inerentes a essa alta). De qualquer modo, a matéria objeto do parecer reporta-se ao financiamento da execução de medidas privativas da liberdade, nomeadamente em unidades integradas no SNS, e não à interação dos serviços prisionais com os prestadores (nomeadamente hospitais públicos) do SNS relativamente à prestação de cuidados de saúde pontuais aos reclusos enquanto utentes do SNS(52).

Fundamental quanto ao tema do parecer é o princípio de que os encargos decorrentes da específica situação de reclusão, nomeadamente ao nível das medidas de segurança privativas da liberdade, subsistem abrangidos pela responsabilidade dos serviços prisionais(53). Prestação de cuidados de saúde ao recluso que se realiza nos estabelecimentos prisionais e, quando necessário, em unidades de saúde no exterior (artigo 58.º do RGEP).

A responsabilidade do SNS relativamente à prestação de cuidados de saúde aos reclusos reporta-se aos estritos limites da respetiva condição de utentes do SNS, salvo norma especial ou protocolo entre departamentos do Estado competentes em sentido contrário.

Dessa forma, a existência de dimensões clínicas e outras relativas à proteção da saúde na execução de penas e medidas de segurança privativas da liberdade não colide com a responsabilidade primária da administração prisional. Dimensões clínicas sobre a situação dos reclusos cuja garantia integra as competências dos serviços prisionais, conforme decorre do artigo 135.º, n.º 1, alínea a), do CEPMPL e, em particular no que concerne a inimputáveis ou imputáveis internados, por decisão judicial, em estabelecimento destinado a inimputáveis, por força dos artigos 253.º, n.º 1(54), e 255.º, n.º 1(55), do RGEP.

Por seu turno, a garantia do acesso pelo recluso, enquanto utente do SNS, a cuidados de saúde em condições de qualidade e continuidade idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos compreende o acesso às prestações de saúde asseguradas pelo SNS à generalidade dos utentes(56).

O âmbito de responsabilidade do SNS, em face das normas gerais vigentes e na falta de normas especiais em sentido contrário, não abrange as exigências específicas inerentes à reclusão determinada por uma sentença judicial proferida em processo penal, que devem ser asseguradas pelos serviços prisionais.

Acesso aos cuidados de saúde dos cidadãos sujeitos à privação da liberdade em virtude de sentença criminal em que, sublinhe-se uma vez mais, existe uma responsabilidade primária do sistema administrativo de justiça, e em particular da DGRSP, que complementa a do SNS. A intervenção do SNS só opera relativamente aos beneficiários que são apresentados nos respetivos estabelecimentos para o efeito de receberem cuidados de saúde como quaisquer outros utentes do SNS(57).

Asseguradas pelos serviços prisionais as condições específicas derivadas do estatuto de recluso sendo o mesmo apresentado a estabelecimento do SNS para receber cuidados de saúde em regime de ambulatório ou de internamento hospitalar os custos inerentes, na parte em que se apresentem similares aos suportados com cidadãos em liberdade, devem ser assegurada pelo SNS. Responsabilidade do SNS que não substitui a primeira linha dos encargos dos serviços prisionais que compreendem, nomeadamente, o dever de assegurar, em articulação com os competentes serviços públicos das áreas da saúde, o efetivo exercício do direito de acesso ao SNS em condições idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos, nos termos das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 7.º do CEPMPL.

Enquanto não for publicado diploma próprio regulador do acesso e prestação de cuidados de saúde a recluso em cumprimento de medida de segurança em estabelecimento prisional (previsto no artigo 32.º, n.º 3, do CEPMPL) podem existir estabelecimentos prisionais ou unidades de natureza hospitalar ou destinados à prestação de cuidados especiais de saúde, nomeadamente saúde mental, bem como destinados a inimputáveis ou a imputáveis internados, por decisão judicial, em estabelecimento destinado a inimputáveis, conforme prescrito pelo artigo 9.º, n.º 4, do CEPMPL.

A elaboração do plano terapêutico e de reabilitação do internado em cumprimento de medida de segurança privativa da liberdade, embora deva compreender a participação de especialistas em saúde mental, é da responsabilidade dos serviços prisionais e tem de ser homologado pelo Tribunal de Execução de Penas – artigos 128.º e 172.º do CEPMPL e 254.º do RGEP. Pelo que, a escolha e alteração do regime de execução não constitui matéria da reserva médica, integrando-se numa apreciação global conformada pelas finalidades normativas da execução das medidas de execução que compreende, nomeadamente, campos de intervenção jurisdicional – cf. disposições conjugadas dos artigos 12.º a 16.ºe 127.º do CEPMPL e ainda dos artigos 252.º e 253.º do RGEP(58).

Em face do exposto, não pode ser imposta ao SNS a transferência para esse sistema público da responsabilidade pelos encargos da execução de medidas de segurança de internamento de inimputáveis decretadas ao abrigo do Código Penal, por falta de suporte nas normas vigentes sobre a responsabilidade administrativa pela execução das medidas de segurança privativas da liberdade.

§ II.3.5.2 Existe um campo específico do cumprimento de medidas de segurança de internamento que merece considerações adicionais, o regime de execução de medidas de segurança privativas da liberdade em unidade de saúde mental não prisional prevista no artigo 126.º, n.º 2, do CEPMPL.

Internamento em unidade de saúde mental não prisional que constitui uma forma específica de execução de medidas de segurança carecida de regulação em diploma próprio(59) estabelecida como regime de execução preferencial(60).

O CEPMPL, decorrida a vacatio legis de seis meses, encontra-se em vigor há mais de 6 anos e 10 meses sem que, tenha sido publicado diploma próprio relativo à execução de internamento de inimputáveis em unidade de saúde mental não prisional.

Essa omissão legislativa não obsta à vigência da regra preferencial sobre internamento em unidade de saúde mental não prisional que tem de subsistir enquadrada num sistema normativo em que o Ministério da Justiça é o departamento governamental responsável pela execução de todas as medidas privativas da liberdade.

Em coerência, prescreve-se que na organização da DGRSP a DSEMPL (supra § II.3.2) constitui a unidade orgânica responsável pela gestão da população prisional e pelo acompanhamento dos regimes de execução das medidas privativas da liberdade previstos na lei e, em particular, pela proposta de internamento e pela gestão e acompanhamento de reclusos inimputáveis em unidades hospitalares não prisionais (artigo 2.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), da Portaria n.º 118/2013).

As finalidades da execução da medida privativa da liberdade aplicada a inimputável são a reabilitação do internado e a sua reinserção no meio familiar e social, prevenindo a prática de outros factos criminosos e servindo a defesa da sociedade e da vítima em especial (tal como a execução da pena de imputável internado, por decisão judicial, em estabelecimento destinado a inimputáveis), nos termos do n.º 1 do artigo 126.º do CEPMLP. Finalidades que se apresentam independentes do regime de execução de medidas de segurança privativas da liberdade (em unidade de saúde mental não prisional ou estabelecimento prisional).

Consequentemente, ainda que o regime de execução de medida de segurança privativa da liberdade decorra em unidade de saúde mental não prisional (cf. artigo 254.º, n.º 5, do RGEP) o plano terapêutico e de reabilitação é uno, subsistindo atribuída à DGRSP a responsabilidade administrativa pela sua elaboração e envio ao tribunal, tal como as responsabilidades relativas aos meios especiais de segurança (artigos 131.º do CEPMPL e 255.º do RGEP).

Enquanto não entrar em vigor o diploma próprio sobre a execução de medida de segurança em unidade de saúde mental não prisional, o mesmo subsiste submetido ao CEPMPL. Pelo que, os serviços prisionais não têm competência para impor a transferência para o SNS dos encargos relativos à execução da medida privativa da liberdade aplicada a inimputável orientada pela reabilitação do internado e a sua reinserção no meio familiar e social, prevenindo a prática de outros factos criminosos e servindo a defesa da sociedade e da vítima em especial, independentemente do estabelecimento em que essas medidas sejam cumpridas.

III. Conclusões

Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1 – A aplicação de medida de segurança de internamento de inimputáveis depende, nos termos do artigo 91.º, n.º 1, do Código Penal, de sentença judicial transitada em julgado (ao abrigo das regras processuais penais) sobre a verificação dos seguintes pressupostos cumulativos:

a) Prática de um concreto ilícito típico criminal;

b) Inimputabilidade do agente no momento da prática do facto;

c) Juízo de probabilidade, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, sobre a existência de fundado receio de que o agente venha a cometer outros factos da mesma espécie.

2 – O internamento de inimputáveis ao abrigo do artigo 91.º, n.º 1, do Código Penal é configurado como uma reação criminal inconfundível com intervenções determinadas por fins terapêuticos de saúde mental que visem primariamente assegurar a prestação de cuidados de saúde ao cidadão.

3 – A natureza criminal das medidas privativas da liberdade determina que a respetiva execução seja regulada pelo Código da Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade (CEPMPL) aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro.

4 – O regime relativo ao internamento compulsivo ao abrigo da Lei de Saúde Mental tem suporte em pressupostos inconfundíveis com a aplicação das medidas de segurança previstas pelo Código Penal não sendo regulado pelo CEPMPL.

5 – As componentes administrativas e financeiras da execução das medidas de segurança de internamento de inimputáveis decretadas judicialmente ao abrigo do Código Penal devem ser asseguradas pelo Ministério da Justiça atento, nomeadamente, o disposto no artigo 2.º, alínea e), da Lei Orgânica do Ministério da Justiça aprovada pelo Decreto-Lei n.º 123/2011, de 29 de dezembro.

6 – Na organização do Ministério da Justiça a execução das medidas privativas da liberdade integra as atribuições próprias da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), nos termos dos artigos 2.º e 3.º, alínea a), da Lei Orgânica da DGRSP aprovada pelo Decreto-Lei n.º 215/2012, de 28 de setembro.

7 – Arquitetura organizacional refletida na incumbência dos serviços prisionais prevista no artigo 135.º, n.º 1, alínea a), do CEPMPL: Garantir, nos termos da lei, a execução das penas e medidas privativas da liberdade, de acordo com as respetivas finalidades reportadas à «reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a proteção de bens jurídicos e a defesa da sociedade» (nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do CEPMPL).

8 – O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é um conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e de serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde cujo objetivo é a efetivação, por parte do Estado, da responsabilidade que lhe cabe na proteção da saúde individual e coletiva, o qual funciona sob a superintendência ou a tutela do Ministro da Saúde sendo regulado, nomeadamente, pelo Estatuto do SNS aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de janeiro.

9 – O direito constitucional a ser tratado como beneficiário do SNS independentemente de estar sujeito ou não a uma medida penal privativa da liberdade decorre da universalidade do SNS consagrada no artigo 64.º, n.º 2, da Constituição.

10 – Em coerência com a universalidade do SNS, o artigo 7.º, n.º 1, alínea i), do CEPMPL prescreve de forma expressa que a execução das medidas privativas da liberdade garante ao recluso, nomeadamente, o direito de acesso ao SNS em condições idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos e o artigo 32.º, n.º 2, do CEPMPL que o recluso é, para todos os efeitos, utente do SNS.

11 – Integra as atribuições do Ministério da Justiça assegurar o financiamento da generalidade dos custos públicos inerentes ao internamento de inimputáveis condenados ao abrigo do Código Penal em medida privativa da liberdade.

12 – Incumbe, em primeira linha, à DGRSP providenciar, em articulação com os competentes serviços públicos das áreas da saúde, pelo efetivo exercício do direito de acesso do recluso ao SNS em condições idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos, nos termos das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 7.º do CEPMPL.

13 – A circunstância de a medida de segurança privativa de liberdade ser cumprida em unidade de saúde mental não prisional, ao abrigo do artigo 126.º, n.º 2, do CEPMPL, não altera a respetiva natureza penal nem, salvo norma expressa em sentido contrário, a consequente responsabilidade da DGRSP pela dimensão administrativa da respetiva execução.

14 – A complexidade das questões interorgânicas envolvidas na repartição de responsabilidades pelas tarefas administrativas e financeiras relativas ao cumprimento de medidas privativas da liberdade em unidade de saúde mental deve ser objeto de regulação em diploma próprio previsto no artigo 126.º, n.º 5, do CEPMPL.

15 – Enquanto não for publicado o diploma próprio previsto no artigo 126.º, n.º 5, do CEPMPL, os encargos decorrentes da específica situação de reclusão de inimputáveis que cumprem medida de segurança privativa da liberdade em unidade de saúde mental e de imputáveis que cumprem pena nesse tipo de instituições subsistem abrangidos pela responsabilidade dos serviços prisionais enquanto departamento estadual que deve garantir, nos termos da lei, a execução das penas e medidas privativas da liberdade de acordo com as respetivas finalidades.

16 – Sem prejuízo das conclusões anteriores, os encargos relativos à prestação de cuidados de saúde por instituições do SNS a reclusos integram os custos de financiamento do SNS e, salvo acordo de cooperação em sentido contrário das entidades envolvidas, não podem ser reclamados ao Ministério da Justiça na parte em que quanto a utentes do SNS em liberdade devessem ser suportados por esse sistema público de saúde.

17 – A complexidade das questões interorgânicas envolvidas na repartição de responsabilidades pelas tarefas administrativas e financeiras necessárias para assegurar o acesso e a prestação de cuidados de saúde aos reclusos cujo cumprimento de medidas privativas da liberdade decorre em estabelecimento prisional deve ser objeto de regulação por diploma próprio previsto no artigo 32.º, n.º 3, do CEPMPL, o qual, contudo, ainda não foi publicado.

(1) Ofício entrado na Procuradoria-Geral da República em 17-11-2016.

(2) Na sequência de redistribuição do processo por força de despacho proferido em 2-12-2016.

(3) Fórmula empregue no artigo 12 do texto subscrito pelas entidades consulentes.

(4) Artigo 11 do texto que fundamentou a consulta.

(5) Cf. artigos 14, 16, 18, 19, 20, 21, 28 e 32.

(6) Direito Criminal, volume I, Coimbra, Almedina, 1971 (reimpressão), p. 331.

(7) No n.º 3 do artigo 20.º acrescenta-se: «A comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior». Regime sobre imputabilidade diminuída resultado de opções particulares de política criminal, nomeadamente, sobre a rejeição do modelo dualista, ainda que «por causa disso tenha que considerar inimputável quem, afinal, é imputável» (Maria João Antunes, O internamento de inimputáveis em estabelecimentos destinados a inimputáveis, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 75).

(8) Acolhida no n.º 4 do artigo 20.º do CP: «A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto.»

(9) Jorge Figueiredo Dias, Direito penal português – As consequências jurídicas do crime, Lisboa, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, p. 469; Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo”, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 125; Maria João Antunes, Medida de segurança de internamento e facto de inimputável em razão de anomalia psíquica, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 469.

(10) E objeto de referência especificada no artigo 1.º, n.º 2, do CP: «A medida de segurança só pode ser aplicada a estados de perigosidade cujos pressupostos estejam fixados em lei anterior ao seu preenchimento».

(11) Cf. Figueiredo Dias, op. cit., 1993, pp. 424-429. Refira-se que existe controvérsia na doutrina penalista portuguesa sobre a função das medidas de segurança na tutela de bens jurídicos e expetativas comunitárias tema sobre o qual, contudo, não se apresenta pertinente desenvolvimento, em face da economia do presente parecer.

(12) Como reconhece Maria João Antunes, «constituindo o facto praticado pelo agente inimputável em virtude de anomalia psíquica um dos “pontos de referência dos critérios de aferição da proporcionalidade”, vocacionada para “papel e função análogos aos que são desempenhados no direito das penas pelo princípio da culpa”, abriu-se também por aqui a porta para uma aproximação da medida de segurança à pena e ao crime, bem como para a autonomização do facto enquanto facto pressuposto do internamento de agente inimputável em virtude de anomalia psíquica» (op. cit., 2002, p. 174)

(13) Prescreve o artigo 91.º, n.º 2, do CP: «Quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, o internamento tem a duração mínima de três anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social».

Por seu turno o artigo 92.º, n.º 2, do CP dispõe que o «internamento não pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime cometido pelo inimputável». Existindo uma ressalva para crimes mais graves no n.º 3 do mesmo preceito legal: «Se o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime punível com pena superior a oito anos e o perigo de novos factos da mesma espécie for de tal modo grave que desaconselhe a libertação, o internamento pode ser prorrogado por períodos sucessivos de dois anos até se verificar a situação prevista no n.º 1. [o tribunal verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem].»

(14) Nos termos do artigo 92.º, n.º 1 do CP, esse preceito ressalva que tal ponderação é realizada sem prejuízo do disposto no artigo 91.º, n.º 2, do CP (cf. nota precedente).

(15) Referida, apenas, como elemento auxiliar de enquadramento da consulta e do argumentário das duas perspetivas sobre a resposta à específica questão suscitada (supra § II.1).

(16) Revista pela Lei n.º 101/99, de 26-8.

(17) Prescrevendo-se em sintonia no artigo 8.º, n.º 2, da LSM que o «internamento compulsivo só pode ser determinado se for proporcionado ao grau de perigo e ao bem jurídico em causa».

(18) Diploma de 1963 também conhecido como Lei da Saúde Mental.

(19) «O internamento compulsivo de portadores de anomalia psíquica», AAVV A Lei de Saúde Mental e o Internamento Compulsivo, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 82.

(20) José Carlos Vieira de Andrade, op. cit., p. 85.

(21) Sobre os termos da discussão, cf. António João Latas/Fernando Vieira, Notas e comentários à Lei de Saúde Mental, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 56.

(22) «Palavras finais à conferência do Procurador-Geral da República», AAVV A Lei de Saúde Mental e o Internamento Compulsivo, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 61.

(23) Sobre este ponto, veja-se o recente parecer n.º 19/2016, de 25-1-2017 (o qual, à data do presente parecer não se encontra acessível na base de dados aberta ao público sita em http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf, subsistindo apenas na «área reservada»), em que nomeadamente, se destacou que «o reforço garantista de regras sobre direito disciplinar público é empreendido por aproximações, necessariamente moderadas, ao regime mais exigente e rigoroso do processo penal».

(24) Expressão empregue no ponto 7 da exposição de motivos da proposta de lei n.º 121/VII.

(25) Por esse motivo, relativamente aos atos supervenientes, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29-4-2014 (processo n.º 1196/13.7TBPRT-A.P1) se conclua «que o processo judicial, à semelhança do que ocorre com o processo clínico, acompanhasse o cidadão, por isso sem margem para dúvida estatuiu que é competente o tribunal judicial da área de residência do internado».

(26) Op. cit., p. 184.

(27) A Lei de Saúde Mental Anotada, Coimbra, Almedina, 2003, p. 37.

(28) Nas palavras de Figueiredo Dias – «Para uma reforma global do processo penal português», in AAVV, Para uma nova justiça penal, Ciclo de conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Coimbra, Almedina, 1983, p. 216 -, que o assumiu como objetivo da reforma processual.

(29) Assim Figueiredo Dias, op. cit., 1983, p. 219 e, essencialmente, «Sobre a inimputabilidade jurídico-penal em razão de anomalia psíquica: a caminho de um novo paradigma?», Estudios penales y criminologicos, XIII, Santiago de Compostela, Universidade de Santiago de Compostela, 1990, pp. 149-150; Maria João Antunes, op. cit., 1993, p. 108; José Souto Moura, «Inquérito e Instrução» in Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de direito processual penal – O novo Código de Processo Penal (org.), Coimbra, Almedina 1988 (Reimp. de 1991), p. 93; Paulo Dá Mesquita, Direção do inquérito penal e garantia judiciária, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 87-88, sentido, aliás, incontornável em face das disposições dos artigos 1.º, n.º 1, al. a), 2.º e 283.º, n.º 2 e n.º 3, al. b), do CPP.

(30) Isto é, caso o Ministério Público entenda que não existem indícios suficientes que fundamentem a aplicação de uma medida de segurança há lugar à prolação de um despacho de arquivamento, nos termos do art. 277.º, n.º 2, do CPP – devendo ser ponderada a abertura de um procedimento administrativo com vista à eventual propositura de ação no âmbito da Lei de Saúde Mental (que é matéria que escapa ao presente parecer, cf. supra §§ II.1 e II.2.2).

(31) No caso de concluir pela inimputabilidade em virtude de anomalia psíquica, o Ministério Público está confrontado apenas com duas alternativas possíveis: arquivamento ou acusação, não sendo admissíveis soluções de diversão já que pela sua própria natureza as medidas de segurança não permitem uma determinação judicial em função da duração da perigosidade criminal que as justifique (cf. Maria João Antunes, «Alterações ao sistema sancionatório. As medidas de segurança», in Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, vol. II, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 1998, p. 128; Paulo Dá Mesquita, op. cit., p. 88).

(32) Como, aliás se destacou no parecer n.º 45/2014, de 15-1-2015 (o qual, à data do presente parecer não se encontra acessível na base de dados aberta ao público sita em http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf, subsistindo apenas na «área reservada»), no caso de ação civil enxertada a complexidade das questões envolve plurisubjetividade que não se verifica no caso de enxerto superveniente de procedimento decisório ao abrigo da LSM:

«Cenário processual penal em que, pelo menos em abstrato, podem ser interpostas por particulares demandas que visam a responsabilização civil de pessoas coletivas insuscetíveis de responsabilidade criminal e/ou pessoas singulares responsáveis civis de forma solidária com aquelas, por força do disposto princípio da adesão estabelecido no artigo 71.º do Código de Processo Penal: “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.”

«Nesse domínio emerge como sujeito processual autónomo o demandado que não é arguido, impondo-se o respetivo patrocínio, por força do artigo 76.º, n.º 2, do Código de Processo Penal: «Os demandados e os intervenientes devem fazer-se representar por advogado».

(33) Publicado no Diário da República 2.ª série, de 27 de agosto de 1991

(34) Sublinhando-se, ainda, sobre a posição do intérprete nesta sede, o seguinte:

«A definição da medida de flexibilização de execução das penas (e medidas de segurança) privativas de liberdade prevista no artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 265/79, os pressupostos e elementos objetivos e subjetivos, e a fixação em órgão da administração da competência para a respetiva concessão, constituíram opções positivas do legislador; os motivos determinantes da opção tomada e a concretização normativa de tal opção relevam nessa dimensão, e constituem dados assentes em sede interpretativa.

«Na posição em que o intérprete se tem de situar, a análise da solução não poderá ser efetuada com base em pressupostos de razoabilidade do sistema, ou de opção, mas apenas no campo de eventual (des)conformidade ao nível da Constituição.»

(35) Objeto de alterações aprovadas pelas Leis n.º 33/2010, de 2 de setembro, n.º 40/2010, de 3 de setembro, e n.º 21/2013, de 21 de fevereiro.

(36) A redação do CEPMPL refere-se à Direção-Geral dos Serviços Prisionais que foi extinta, tendo sido criada a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) que passou a assumir as referidas atribuições, conforme regime orgânico referido à frente.

(37) Gomes Canotilho, «A questão do autogoverno das magistraturas como questão politicamente incorreta» in AAVV Ab uno ad omnes, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, p. 256.

(38) Alterado pelo Decreto-Lei n.º 61/2016, de 12 de setembro.

(39) Recorde-se que os secretários de Estado não dispõem de competência própria, exceto no que se refere aos respetivos gabinetes, e exercem, em cada caso, a competência que neles seja delegada pelos ministros respetivos, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, da referida Lei Orgânica.

(40) Artigo 30 do despacho da consulta no resumo de argumentos integrados sobre a aí denominada «perspetiva do Ministério da Justiça».

(41) Cf. Paulo Dá Mesquita, A prova do crime e o que se disse antes do julgamento – Estudo sobre a prova no processo penal português, à luz do sistema norte-americano, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 318, 483, 509, 626.

(42) Como, aliás, foi destacado por Figueiredo Dias nos trabalhos da comissão de revisão do Código Penal de 1982 (cf. Ministério da Justiça, Atas da Comissão de Revisão, Lisboa, Rei dos Livros, 1993, p. 121) que veio a culminar na reforma de 1995.

(43) Pelo que, a tese que propugna que esse constitui o primeiro ou principal fundamento das medidas de segurança afigura-se incompatível com o regime jurídico vigente. Relembre-se, ainda, que, como oportunamente se referiu (supra § I.2.1), o conceito de inimputabilidade é amplo (abrange nomeadamente quem por força do consumo de estupefacientes ou outra causa de perturbação da consciência «for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação») e constitui, ainda, condição da aplicação da medida de segurança a perigosidade criminal futura relativa à probabilidade da prática «de outros factos da mesma espécie».

(44) Alterada pelo Decreto-Lei n.º 10/93, de 15 de janeiro, Lei n.º 27/2002, de 11 de agosto; Lei n.º 40/2005, de 17 de fevereiro; Decreto-Lei n.º 222/2007, de 29 de maio, tendo na sequência desse diploma sido extintas sub-regiões de saúde pelas portarias n.º 273/2009 a 276/2009, de 18 de março.

(45) O núcleo da discussão da proposta de lei n.º 127/V e dos projetos de lei n.os 481/V (PS), 484/V (PRD), 485/V (PCP) e 486/V (CDS), dos quais emergiu a atual Lei de Bases da Saúde quanto à Base XXIII incidiu nas únicas taxas a pagar diretamente pelos beneficiários do SNS, as «taxas moderadoras».

(46) Gomes Canotilho/Vital Moreira, op. cit., p. 827.

(47) Prosseguindo-se, depois de análise das normas ordinárias à frente, que «o legislador criou um Serviço Nacional de Saúde, como «um conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e de serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde» de âmbito nacional, ao qual cabe a responsabilidade da “efetivação, por parte do Estado, da responsabilidade que lhe cabe na proteção da saúde individual e coletiva”, de caráter universal, porque dele pode beneficiar toda a população residente no território nacional, e geral, na medida em que abrange todos os serviços públicos de saúde e presta integralmente todos os cuidados de saúde (cuidados primários e diferenciados) ou garante a sua prestação, estendendo-se, por isso, a todos os domínios da proteção da saúde – dando, assim, satisfação ao preceituado no artigo 64.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, da Constituição.»

(48) É o seguinte o texto completo da Base XXV que subsiste inalterada desde 1990:

«1 – São beneficiários do Serviço Nacional de saúde todos os cidadãos portugueses.

«2 – São igualmente beneficiários do Serviço Nacional de Saúde os cidadãos nacionais de Estados membros das Comunidades Europeias, nos termos das normas comunitárias aplicáveis.

«3 – São ainda beneficiários do Serviço Nacional de Saúde os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal, em condições de reciprocidade, e os cidadãos apátridas residentes em Portugal.»

(49) Reforma Penal Internacional, Dos Princípios à Prática, Lisboa, Procuradoria-Geral da República, 1996, p. 77.

(50) Cf. Nancy Wolff, «Intervenção em saúde mental para pessoas com comportamento antissocial: 10 pontos de interface», A. Castro Fonseca et al. (eds.) Psicologia Forense, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 559-561. Sobre as variantes organizacionais quanto aos serviços de saúde que têm de ser assegurados pelos serviços prisionais, cf. Inês Filipa Rodrigues de Magalhães «Implicações constitucionais, penais e processuais penais da intervenção de atores privados no âmbito da execução penal: A Reserva de Administração», Maria João Antunes et al. (eds.) Os novos atores da justiça penal, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 514-516.

(51) Prescrevendo esse preceito que o internamento «depende de autorização do diretor-geral dos Serviços Prisionais, salvo urgência médica, caso em que o diretor do estabelecimento prisional determina o internamento, comunicando-o de imediato ao diretor-geral». Vd., ainda, o artigo 59.º do RGEP sobre Prestação de cuidados de saúde e internamento no exterior.

(52) Refira-se que o artigo 31.º, n.º 3, do ESNS, na redação originária, prescreve: «Sem prejuízo da celebração de acordos específicos, a entidade gestora pode faturar, nos mesmos termos das outras instituições ou serviços do SNS, a entidades públicas ou privadas responsáveis legal ou contratualmente pelo pagamento de cuidados de saúde, nomeadamente subsistemas de saúde ou entidades seguradoras.» O artigo 31.º do ESNS foi objeto de uma revogação parcial pelo artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 185/2002: «É revogado o disposto nos artigos 28.º a 31.º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de janeiro, na parte referente ao contrato de gestão.»

(53) Compreendendo-se, à luz dessa coordenada base, a necessidade de o internamento hospitalar não prisional de reclusos ter de ser, como já se assinalou, autorizado pelos responsáveis dos serviços prisionais.

(54) «Os internados são sujeitos a acompanhamento médico permanente, desde o momento do ingresso.»

(55) «A aplicação de meios especiais de segurança é determinada pelo diretor do estabelecimento prisional, sob proposta e orientação do médico, salvo se se tratar de situação de perigo iminente.»

(56) Cujos encargos devem ser assegurados pelo SNS tanto ao utente em liberdade como ao recluso.

(57) Nos termos do artigo 2.º, alínea y), da LODGRSP compete a essa Direção-Geral «Conceder, pontualmente, apoio socioeconómico aos destinatários da atividade exercida pela DGRSP, na medida dos meios disponíveis, supletivamente ao prestado por outras entidades públicas responsáveis e pressupondo a participação responsável do indivíduo». Incumbe, ainda, à mesma entidade nos termos da alínea g): «Promover a dignificação e humanização das condições de vida nos centros educativos e estabelecimentos prisionais, visando a reinserção social, designadamente através da prestação de cuidados de saúde […]».

(58) Como se destacou (supra § II.3.1). O tema da consulta não incide sobre a repartição de competências entre o Tribunal de Execução de Penas e os serviços prisionais, sendo, assim, independente de alguns nódulos problemáticos que subsistem sobre o âmbito da reserva jurisdicional constitucionalmente imposta, revelados nas fundamentações da maioria e dos votos de vencidos no Acórdão n.º 427/2009 do Tribunal Constitucional sobre a colocação do recluso em regime aberto no exterior no quadro do CEPMLP e respetiva conformidade constitucional. Também se apresenta estranho ao objeto do presente parecer o papel procedimental atribuído ao Ministério Público nessa sede. Posicionamento revelador, de qualquer modo, do protagonismo dos serviços prisionais. Com efeito, o Ministério Público encontra-se no CEPMPL destituído de qualquer poder de decisão próprio e na parte em que é destinatário das comunicações da administração penitenciária fica ética e juridicamente comprometido num conjunto de decisões materiais dos serviços prisionais, apesar de não ter qualquer participação decisória apenas podendo recorrer em termos similares aos do contencioso administrativo dessas decisões para o juiz do Tribunal de Execução de Penas. Com efeito, no CEPMPL optou-se por «posicionar» o Ministério Público no procedimento de «impugnação» «das decisões da administração penitenciária que lhe devem ser comunicadas para esse efeito» «que considere ilegais» «perante o Tribunal de Execução das Penas» como entidade com a competência limitada à impugnação judicial de atos administrativos sem qualquer poder próprio. Sistema particular em que, ao contrário do que é anunciado na exposição de motivos da proposta de lei n.º 252/X, o próprio juiz do Tribunal de Execução de Penas assume, relativamente a alguns aspetos, um tipo de configuração procedimental atípico e distante do modelo processual penal pois, embora não seja um tribunal que vai dirimir conflitos de estrita legalidade administrativa, ou ações do MP contra decisões de entes administrativos, acaba por em vários casos só poder intervir por impulso do Ministério Público, por seu turno convertido em mera entidade com a possibilidade de impugnação judicial de decisões dos serviços prisionais. Com efeito, na exposição de motivos da proposta de lei n.º 252/X era colocada a ênfase na ideia de que a matéria da execução de penas e medidas de segurança privativas da liberdade não deve ser regulada «pelo direito administrativo» e que se está «perante um litígio inequivocamente disciplinado pelo setor do Direito Criminal relativo à execução das penas e medidas privativas da liberdade» revelando a rejeição de um modelo clínico. Embora exista um vasto campo de decisões sem intervenção judicial as mesmas são atribuídas aos serviços prisionais enquanto entidade com poderes de definição do regime de execução em face das finalidades estabelecidas na lei, artigo 2.º, n.º 1, e 135.º, n.º 1, alínea a), do CEPMPL.

(59) Nos termos do disposto pelo artigo 126.º, n.º 5, do CEPMPL

(60) Pelo artigo 126.º, n.º 2, do CEPMPL.

Este parecer foi votado na sessão do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 2 de março de 2017.

Maria Joana Raposo Marques Vidal – Paulo Joaquim da Mota Osório Dá Mesquita (Relator) – Eduardo André Folque da Costa Ferreira – Maria de Fátima da Graça Carvalho – Fernando Bento – Maria Manuela Flores Ferreira – João Eduardo Cura Mariano Esteves – Maria Isabel Fernandes da Costa – Vinício Augusto Pereira Ribeiro – Francisco José Pinto dos Santos – Amélia Maria Madeira Cordeiro.

Este parecer foi homologado por Despacho de 28 de abril de 2017, de Sua Excelência a Ministra da Justiça e Despacho de 12 de junho de 2017, de Sua Excelência o Ministro da Saúde.

Está conforme.

Lisboa, 1 de agosto de 2017. – O Secretário da Procuradoria-Geral da República, Carlos Adérito da Silva Teixeira.»

Parecer CNECV sobre a Proposta de Lei que estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das caraterísticas sexuais de cada pessoa

-Parecer N.º 97/CNECV/2017 sobre a Proposta de Lei N.º 75/III/2ª GOV – Estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das caraterísticas sexuais de cada pessoa


«(…)PARECER

1. O presente projeto de Proposta de Lei inclui alterações relativamente ao Projeto de Lei N.º 242/XIII/2ª (BE) “Reconhece o Direito à Autodeterminação de Género e ao projeto de Proposta de Lei que estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa, já apreciados pelo CNECV, e que foram objeto do Parecer N.º 91/CNECV/2017  e do Parecer N.º 94/CNECV/2017, respetivamente.

2. Uma dessas alterações vai ao encontro das preocupações expressas pelo CNECV naqueles Pareceres, relativamente às pessoas que pretendem submeter-se a tratamentos e intervenções cirúrgicas para efeitos de reatribuição sexual em situações de autonomia própria comprometida por perturbações mentais, designadamente as que se exprimem por convicções delirantes de transformação sexual.

3. Todavia, não foi considerado no atual projeto de Proposta de Lei nenhum outro mecanismo direcionado às pessoas que em idêntica situação pretendam recorrer ao procedimento administrativo de mudança de sexo e de alteração de nome.

4. Essa omissão adiciona fundamentos éticos para a rejeição da atual proposta aos que já haviam sido assumidos no Parecer N.º 91/CNECV/2017  e noParecer N.º 94/CNECV/2017 e que se reforçam na:

a) interpretação do “reconhecimento da identidade e/ou expressão de género” como “livre autodeterminação do género”, autonomizando esse conceito do conceito de sexo, e a essa interpretação atribuindo, sem sustentação jurídico-constitucional suficiente, valor de “direito humano fundamental”;

b) remissão do ato de identificação pessoal no registo civil para um exercício simples de vontade individual, desconsiderando a sua natureza pública com as consequências daí advenientes, em termos de certeza e de segurança jurídicas;

c) atribuição aos menores de 16 anos da possibilidade de acesso universal a autodeterminação de género, como simples expressão de vontade individualautónoma, sem acautelar ponderadamente questões associadas ao seu próprio processo de maturação e desenvolvimento neuro-psíquico.

Lisboa, 10 de Julho de 2017

O Presidente, Jorge Soares.

Foi Relatora a Conselheira Sandra Horta e Silva.

Aprovado por maioria em Reunião Plenária do dia 10 de Julho, em que para além do Presidente estiveram presentes os seguintes Conselheiros/as: André Dias Pereira; Daniel Torres Gonçalves; Filipe Almeida; Francisca Avillez; Jorge Costa Santos; José Esperança Pina; Lucília Nunes; Maria Regina Tavares da Silva; Pedro Pita Barros; Rita Lobo Xavier; Sandra Horta e Silva; Sérgio Deodato; Tiago Duarte»


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Veja os outros pareceres e publicações do CNECV:

CNECV

Parecer CNECV sobre listas de espera na realização de Diagnóstico Genético Pré-Implantação DGPI

-Parecer N.º 98/CNECV/2017 sobre listas de espera na realização de Diagnóstico Genético Pré-Implantação DGPI


«(…)PARECER

1. No âmbito de um sistema de saúde de cobertura universal e geral, é eticamente justificado que existam critérios públicos e transparentes de priorização nas listas de espera para acesso às técnicas de DGPI, e que os mesmos sejam validados pela autoridade pública competente;

2. Os critérios de admissibilidade devem ser baseados em sólida evidência científica e devem ter em conta as características da doença a diagnosticar e as características da utente/casal;

3. Na definição de prioridades devem ter-se em conta os princípios éticos da razoabilidade, transparência, justificabilidade e equidade, que permitam garantir a justiça e a prestação de contas relativamente às decisões;

4. Os critérios para a disponibilidade de técnicas de elevada complexidade devem ter em consideração a necessidade de garantir o expoente mais elevado de competências, qualidade, conhecimento e experiência na prestação da técnica.

5. O respeito pela equidade geográfica, sendo um objetivo ético a prosseguir, deve ser equacionado com essa necessidade, garantindo-se um uso justo e responsável dos recursos.

6. Os critérios de hierarquização e eventual priorização na lista de espera devem ser claros, transparentes, públicos, científica e eticamente justificáveis, o que exclui a sua definição casuística;

7. Qualquer situação de alteração de hierarquia na aplicação dos critérios de prioridade no acesso a recursos de saúde exige uma apropriada fundamentação técnica que não ponha em causa os princípios éticos da igualdade de acesso por parte dos cidadãos;

8. Os Serviços de saúde devem ter em atenção as formas de comunicação, designadamente nos atos de inclusão ou de exclusão na prestação de cuidados de saúde, adotando sempre uma comunicação humanizada, que tenha em conta a vulnerabilidade de quem a eles recorre.

Lisboa, 10 de Julho de 2017

O Presidente, Jorge Soares.

Foram Relatores a Conselheira/os Conselheiros André Dias Pereira, Ana Sofia Carvalho e José Manuel Silva2 .

Aprovado por maioria em Reunião Plenária do dia 10 de Julho, em que para além do Presidente estiveram presentes os seguintes Conselheiros/as: André Dias Pereira; Daniel Torres Gonçalves; Filipe Almeida; Francisca Avillez; Jorge Costa Santos; José Esperança Pina; Lucília Nunes; Maria Regina Tavares da Silva; Pedro Pita Barros; Rita Lobo Xavier; Sandra Horta e Silva; Sérgio Deodato; Tiago Duarte.»


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CNECV

Parecer da ERS sobre a aquisição pela Luz Saúde das sociedades British Hospital

Em 12 de junho de 2017, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) recebeu da Autoridade da Concorrência (AdC) uma solicitação de parecer sobre a operação de concentração consistente na aquisição, pela Luz Saúde, S.A., do controlo sobre as sociedades British Hospital – Lisbon XXI, S.A., British Hospital Management Care, S.A. e Microcular – Centro de Microcirurgia, Laser e Diagnóstico, mediante a aquisição das participações sociais representativas do capital social e direitos de voto dessas sociedades à Capital Criativo – SCR, S.A..

Este parecer foi elaborado pela ERS, nos termos do n.º 1 do artigo 55.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, que estabelece que “sempre que uma concentração de empresas tenha incidência num mercado que seja objeto de regulação setorial, a Autoridade da Concorrência, antes de tomar uma decisão que ponha fim ao procedimento, solicita que a respetiva autoridade reguladora emita parecer sobre a operação notificada […]”.

Acresce que nos termos da alínea f) do artigo 10.º dos estatutos da ERS, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto, é objetivo da atividade reguladora da ERS “promover e defender a concorrência nos segmentos abertos ao mercado, em colaboração com a Autoridade da Concorrência na prossecução das suas atribuições relativas a este setor”.

O parecer foi remetido à AdC em 28 de junho. Atendendo a que a AdC emitiu decisão sobre esta operação em 6 de julho, a ERS publica agora a versão não confidencial do parecer emitido.

Consultar Parecer

Parecer CNECV sobre o Projecto de Decreto-Lei que regula a composição, a constituição, as competências e o funcionamento das comissões de ética

Parecer n.º 96/CNECV/2017 sobre o Projecto de Decreto-Lei que regula a composição, a constituição, as competências e o funcionamento das comissões de ética e procede à revogação do decreto-lei n.º 97/95, de 10 de maio


«(…) PARECER

O CNECV considera que o texto proposto para revogar o Decreto-Lei n.º 97/95 não dá resposta adequada, quer à evolução do conceito de Comissão de Ética para a Saúde, quer aos desafios que lhes são hoje colocados.

Assim, o Projeto de Decreto-Lei deve ser revisto, tendo em consideração as questões detalhadamente identificadas no relatório que antecede este parecer:

1. Enquadramento inadequado do Decreto-Lei, carecendo de uma fundamentação e linguagem éticas prevalecentes;

2. Insuficiência na descrição das competências e da atividade das CE, bem como da sua desejada constituição, tal como pormenorizadamente mencionado no relatório;

3. Desproporcionalidade na focalização das atividades das CE na investigação, com inaceitável secundarização da reflexão sobre questões de diferente natureza, nomeadamente de índole assistencial;

4. Referência inadequada à RNCES, mormente no reforço da sua coordenação junto da CEIC, Comissão que configura uma atividade de reflexão ética exclusivamente dirigida à investigação com medicamentos e dispositivos médicos.

Lisboa, 8 de maio de 2017 O Presidente, Jorge Soares.

Foram Relatores os Conselheiros Filipe Almeida, António Sousa Pereira e Carlos Maurício Barbosa.

Aprovado por unanimidade em Reunião Plenária do dia 8 de maio de 2017, em que para além do Presidente estiveram presentes os seguintes Conselheiros/as:

António Sousa Pereira; Carlos Maurício Barbosa; Filipe Almeida; Francisca Avillez; Jorge Costa Santos; José Esperança Pina; Lucília Nunes; Regina Tavares da Silva; Sandra Horta e Silva; Sérgio Deodato.»


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CNECV

Parecer do Ministério Público Sobre a Compatibilidade do exercício de funções de dirigentes e de profissionais médicos de saúde pública em regime de dedicação exclusiva com o exercício de funções de eleito local

Parecer sobre Acesso ao Ensino Superior – Conselho Nacional de Educação

«Parecer n.º 3/2017

Parecer Sobre Acesso ao Ensino Superior

Preâmbulo

No uso das competências que por lei lhe são conferidas e nos termos regimentais, após apreciação do projeto de Parecer elaborado pelo relator António Pedro Barbas Homem, o Conselho Nacional de Educação, em reunião plenária de 20 de março de 2017, deliberou aprovar o referido projeto, emitindo assim o seu segundo Parecer do ano de 2017.

Parecer

Introdução

O Conselho Nacional de Educação (CNE) tem vindo a refletir ao longo dos anos acerca da natureza, missão e atribuições do ensino superior, quer na sua comissão especializada quer no plenário dos seus membros.

Mais recentemente e no âmbito dos estudos realizados por ocasião dos 30 anos da Lei de Bases do Sistema Educativo, teve ocasião de realizar diversos seminários e ainda de organizar, no âmbito da sua 3.ª Comissão Especializada Permanente – Ensino Superior, Investigação e Cultura Científica, debates sobre questões relevantes acerca do ensino superior na hora presente.

O Governo, através do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, decidiu lançar uma iniciativa no sentido de avaliar os mecanismos de acesso ao ensino superior. No Despacho 6930/2016, de 25 de maio, que cria o Grupo de Trabalho para a avaliação do acesso ao Ensino Superior, o Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior evoca a necessidade de refletir sobre o alargamento e o aprofundamento da democratização do ensino superior, visando em particular a modernização e a adequação do sistema de acesso a novos contextos.

Na preparação desse Relatório foi ouvida a 3.ª Comissão Especializada Permanente do CNE.

O Conselho Nacional de Educação deliberou realizar um debate alargado acerca do relatório final apresentado pelo grupo de trabalho para a avaliação do acesso ao ensino superior, com o título Relatório sobre a avaliação do acesso ao ensino superior (diagnóstico e questões para debate), abaixo referido como Relatório. Considerando a relevância social da temática, decidiu ainda emitir um Parecer sobre esta matéria.

O Conselho Nacional de Educação saúda a oportunidade deste debate público, tendo apreciado de modo muito positivo quer a metodologia adotada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de apresentar para discussão pública trabalhos preparatórios de eventuais reformas legislativas, quer a profundidade, seriedade e atualidade do estudo e das propostas que constam do referido Relatório.

Este Parecer está organizado do seguinte modo:

1 – Os princípios normativos no acesso ao ensino superior e as condições de sucesso escolar

2 – O regime de acesso ao ensino superior

3 – A situação atual do acesso ao ensino superior

4 – Objetivos e vias propostas de reforma

5 – Recomendações

1 – Os princípios normativos no acesso ao ensino superior e as condições de sucesso escolar

Atente-se, primeiro, nos parâmetros constitucionais e, seguidamente, no enquadramento da Lei de Bases do Sistema Educativo, no direito internacional e na legislação de acesso ao ensino superior.

I – Os parâmetros constitucionais de acesso ao ensino superior

A Constituição da República Portuguesa (adiante CRP) prevê, no artigo 43.º, da Parte I, Título II, Capítulo I – Direitos, liberdades e garantias pessoais – a liberdade de aprender e ensinar, que inclui a proibição de o Estado programar a educação segundo diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas, a proibição do ensino público confessional e a garantia de criação de escolas particulares e cooperativas (1).

Concomitantemente dedica os artigos 73.º a 77.º, da Parte I, Título III, Capítulo III – Direitos e deveres culturais – à educação e ao ensino (2). Especificamente em matéria de ensino superior, a CRP garante, na alínea d) do n.º 2 do artigo 74.º,

“a todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, o acesso aos graus mais elevados do ensino […].”

E determina que o regime de acesso assegure

“a igualdade de oportunidades e a democratização do sistema de ensino, devendo ter em conta as necessidades em quadros qualificados e a elevação do nível educativo, cultural e científico do país.” (art. 76.º).

Identifica-se, a este respeito, um princípio especial de igualdade que acresce ao princípio geral de igualdade dos cidadãos perante a lei. De outro lado prevê-se, como critério que se deve igualmente refletir no acesso aos cursos do ensino superior, que o Estado deve promover e apoiar o acesso dos cidadãos portadores de deficiência ao ensino e apoiar o ensino especial, quando necessário, e assegurar aos filhos dos imigrantes apoio adequado para efetivação do direito ao ensino (artigo 74.º).

A especial delicadeza destas disposições já se encontra refletida em vasta jurisprudência constitucional e de outros tribunais. Em especial, identificou-se que os critérios de avaliação do mérito dos candidatos ao ensino superior devem ser objetivos e que quaisquer alterações legislativas no regime de acesso devem respeitar eventuais expetativas que os interessados possam ter adquirido legitimamente (princípio da confiança).

II – Os parâmetros da Lei de Bases do Sistema Educativo

Por seu turno, a Lei n.º 46/86, de 14 de outubro (3), que aprovou as bases do sistema educativo, dedica a sua subsecção III ao ensino superior e determina que compete ao Governo definir, através de decreto-lei, os regimes de acesso e ingresso no ensino superior, em obediência, designadamente, aos princípios da democraticidade, equidade e igualdade de oportunidades, objetividade dos critérios utilizados para a seleção e seriação dos candidatos, universalidade de regras para cada um dos subsistemas de ensino superior, utilização obrigatória da classificação final do ensino secundário no processo de seriação e caráter nacional do processo de candidatura à matrícula e inscrição nos estabelecimentos de ensino superior público.

O caráter unitário do sistema de ensino decorre do princípio segundo o qual, como regra geral, têm acesso ao ensino superior os indivíduos habilitados com o curso do ensino secundário ou equivalente que façam prova de capacidade para a sua frequência (artigo 12.º).

Importa não perder de vista que as disposições relativas ao ensino superior da Lei de Bases resultam da redação que lhe foi conferida em 2005, na sequência do que se convencionou chamar processo de Bolonha (Lei n.º 49/2005, de 30 de agosto). A nova estrutura de três ciclos formativos e graus do ensino superior – licenciatura, mestrado e doutoramento – foi completada com o expresso reconhecimento de que os estabelecimentos de ensino superior podem realizar cursos não conferentes de grau académico cuja conclusão com aproveitamento conduza à atribuição de um diploma (novo artigo 13.º B).

De outro lado, consagrou-se a possibilidade de acesso ao ensino superior de pessoas sem a conclusão do ensino secundário em duas situações: maiores de 23 anos de idade que façam prova de capacidade para a sua frequência através da realização de provas especialmente adequadas, realizadas pelos estabelecimentos de ensino superior; e titulares de formações pós-secundárias adequadas (artigo 12.º, n.º 5).

Em termos paralelos, aponta-se para a previsão de regimes especiais de acesso, ingresso e de frequência do ensino superior para os trabalhadores-estudantes, de modo a garantir os objetivos da aprendizagem ao longo da vida e da flexibilidade e mobilidade dos percursos escolares (artigo 12.º, n.º 7).

Em conclusão, dos parâmetros constitucionais e da legislação de bases decorrem princípios de grande densidade no que respeita ao acesso ao ensino superior – igualdade e igualdade de oportunidades, mérito -, diretrizes programáticas de alargamento do acesso a pessoas que não tiveram possibilidade de aceder no tempo normal (trabalhadores estudantes e maiores de 23 anos) ou que têm naturais dificuldades (portadores de deficiência) e a possibilidade de ser concretizado um regime próprio para titulares de formações pós-secundárias.

III – O direito internacional de educação

A estas disposições acresce o modo como o direito internacional se tem ocupado do ensino superior, elevando o direito à educação, em geral, e, em particular, o direito de acesso ao ensino superior à dignidade de direito humano.

O n.º 2 do artigo 26.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem prevê que

“o acesso aos estudos superiores deve ser aberto a todos, em plena igualdade, em função do mérito.”

Concretizando esta disposição, o Protocolo Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (de acordo com a tradução oficial para a língua portuguesa, dada pela Lei n.º 45/78, de 11 de julho), veio determinar que, para assegurar o pleno exercício do direito à educação,

“o ensino superior deve ser tornado acessível a todos em plena igualdade, em função das capacidades de cada um, por todos os meios apropriados e nomeadamente pela instauração progressiva da educação gratuita.” (artigo 13.º)

Em termos similares, a Convenção sobre os direitos das crianças (de acordo com a versão oficial aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 12 de setembro), estabelece que os Estados Partes reconhecem o direito da criança à educação e, tendo em vista assegurar progressivamente o exercício desse direito na base da igualdade de oportunidades, tornam o ensino superior acessível a todos, em função das capacidades de cada um, por todos os meios adequados (artigo 28.º).

IV – Os princípios democráticos e a justiça no acesso à educação

O acesso ao ensino superior constitui um tema central das teorias da justiça dos nossos dias.

Procura-se um equilíbrio complexo entre as aspirações sociais à elevação do nível educativo, cultural e científico da sociedade e dos cidadãos e o financiamento do sistema de ensino superior por parte de muitos que não vão poder ou não têm ambição de frequentar cursos e instituições de ensino superior. Os sistemas sociais exigem, deste modo, um equilíbrio entre a igualdade de oportunidades e a possibilidade de redistribuição de rendimentos através dos impostos ou através do financiamento privado do ensino superior.

De um lado, o acesso ao ensino superior constitui um instrumento essencial para a construção de uma sociedade democrática, assente na igualdade de oportunidades de sucesso escolar, frequentemente a condição para a realização pessoal e profissional.

De outro lado, o acesso ao ensino superior deve fazer-se em função do mérito individual, e de acordo com as capacidades individuais. Em especial, devem respeitar-se as aspirações individuais, fundamento de uma sociedade livre. Mesmo quando podem aparecer como opostas a tópicos como empregabilidade, sempre se deve entender que a liberdade de escolha dos interessados prevalece sobre a programação da oferta de cursos.

Finalmente, a situação das pessoas com deficiência é sempre merecedora da atenção da sociedade e do Estado e merece diferenciação positiva, especialmente quando se trata do acesso à educação e ao ensino.

2 – O regime de acesso ao ensino superior

I – As soluções legislativas

Em cumprimento do disposto no artigo 12.º da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), foram sucessivamente aprovados, desde 1988 à atualidade, diversos regimes de acesso ao ensino superior através dos Decretos-Leis n.os 354/88, de 12 de outubro (4), 189/92, de 3 de setembro (5), e 28-B/96, de 4 de abril (6), entretanto revogados.

Os procedimentos que estruturam o Concurso Nacional de Acesso, destinado ao ensino superior público, bem como os procedimentos dos Concursos Institucionais, organizados por cada estabelecimento de ensino superior particular e cooperativo, foram genericamente estabelecidos há cerca de 20 anos, num cenário que era caraterizado por uma grande procura do ensino superior, quando comparada com a oferta de vagas, sendo os candidatos quase exclusivamente oriundos dos cursos cientifico-humanísticos do ensino secundário. A via científico-humanista era então predominante nos percursos formativos do ensino secundário.

As experiências de anteriores sistemas de ingresso fizeram com que as instituições do ensino superior, de acordo com as possibilidades abertas pela LBSE, tenham optado por utilizar os exames finais do ensino secundário para avaliar a capacidade para a frequência do ensino superior (art. 12, n.º 1, LBSE).

Quer o Concurso Nacional de Acesso quer os Concursos Institucionais assentam nas classificações internas do ensino secundário, nos seus exames finais e nos resultados das disciplinas consideradas nucleares para o ingresso em cada uma das licenciaturas ou mestrados integrados. De facto, exige-se, para cada área de formação, a fixação de disciplinas nucleares.

Ao lado do Concurso Nacional e dos Concursos Institucionais, admitem-se os chamados concursos locais, destinados a perfis profissionais específicos, normalmente associados a algumas das artes performativas (música, teatro e dança). Uma vez autorizados pelo Governo e aprovado o respetivo regime de candidatura, os candidatos a estes concursos submetem-se às provas específicas das suas áreas vocacionais.

O regime de acesso prevê ainda regimes especiais, decorrentes de compromissos internacionais (bolseiros dos PALOP e os naturais de Timor-Leste) ou de particulares estatutos profissionais (os diplomatas em missão no estrangeiro ou os praticantes desportivos de alto rendimento).

Assim, as vagas definidas no âmbito do Concurso Nacional de Acesso, tal como as vagas definidas para os Concursos Institucionais, integram, para além do contingente geral, obrigatória e prioritariamente diversos contingentes especiais que preenchem uma certa percentagem das vagas globais. Falamos dos seguintes contingentes, com as respetivas quotas máximas: candidatos oriundos das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, que pretendem escolher cursos não ministrados, respetivamente, nas Universidades dos Açores e da Madeira (3,5 % para cada caso); candidatos emigrantes portugueses e familiares (7 %); candidatos a prestar serviço militar efetivo (2,5 %); candidatos portadores de deficiência física ou sensorial (2 %).

A existência destes regimes especiais e quotas de acesso é problematizada no Relatório, em termos que abaixo se desenvolvem.

II – Desenvolvimento

O regime geral atualmente em vigor consta do Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 25 de setembro (7), com sucessivas alterações.

O Decreto-Lei n.º 99/99, de 30 de março, alterou o artigo 22.º de modo a contemplar um elemento omitido por lapso na caraterização dos pré-requisitos na alínea c) do n.º 1.

O Decreto-Lei n.º 26/2003, de 7 de fevereiro, adaptou o Decreto-Lei n.º 296-A/98 à orgânica do XV Governo Constitucional que autonomizou a educação e o ensino superior, e introduziu alterações ao regime de acesso ao ensino superior nos seguintes aspetos.

O número de elencos alternativos de provas não poderia ultrapassar três, salvo em situações de exceção devidamente fundamentadas, a apreciar e decidir, caso a caso, pela Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior (CNAES); O conjunto de provas poderá, por iniciativa da Comissão, ser organizado em subconjuntos por áreas de estudo, ficando a escolha das provas para cada par estabelecimento/curso circunscrita a um subconjunto específico. Relativamente às provas de ingresso, torna-se obrigatória a obtenção de uma classificação mínima de 95 pontos (num total de 200), assegurando que os estudantes que ingressam no ensino superior demonstram um nível mínimo de conhecimentos em disciplinas nucleares para a frequência dos cursos que pretendem realizar. A valorização do percurso educativo do candidato no ensino secundário, nas suas componentes de avaliação contínua e provas nacionais, traduzindo a relevância para o acesso ao ensino superior do sistema de certificação nacional do ensino secundário, está presente de forma inequívoca, quer nas provas de ingresso quer na nota de candidatura, onde a classificação final do ensino secundário tem de ter um peso de pelo menos 50 %, que pode chegar (por decisão de cada estabelecimento de ensino) a 65 %. A classificação dos cursos de ensino secundário português passou a ser, para efeitos de acesso ao ensino superior, calculada até às décimas, sem arredondamento, antes da conversão para a escala de 0 a 200; A classificação dos cursos de ensino secundário não portugueses equivalentes ao ensino secundário português foi convertida para a escala de 0 a 200 através da aplicação de normas que assegurem um adequado paralelismo com o sistema português de classificação. Também para uma maior equidade no tratamento dos candidatos, as regras contidas no anterior n.º 2 do artigo 20.º, autonomizadas num artigo específico, o 20.º-A, referentes à substituição das provas de ingresso por exames finais de disciplinas de cursos não portugueses legalmente equivalentes ao ensino secundário português, foram modificadas acolhendo os princípios essenciais da orientação fixada pela CNAES e algumas das suas recomendações. Visando uma maior transparência na informação aos candidatos, tornou-se obrigatória a publicação no Diário da República dos regulamentos dos pré-requisitos.

O Decreto-Lei n.º 76/2004, de 27 de março, alterou o artigo 42.º, relativo à melhoria da classificação final do ensino secundário.

O Decreto-Lei n.º 158/2004, de 30 de junho, alargou a possibilidade de utilização, na primeira fase dos concursos de acesso, de resultados dos exames realizados na segunda fase de exames para melhoria da classificação final do ensino secundário, quando o estudante não tenha realizado o mesmo exame na primeira fase.

O Decreto-Lei n.º 147-A/2006, de 31 de julho, alterou o disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 296-A/98, de modo a permitir que a classificação final do ensino secundário utilizada na 1.ª fase do concurso de acesso e ingresso no ensino superior possa integrar melhorias de classificação obtidas na 2.ª fase dos exames nacionais em circunstâncias excecionais verificadas no processo de avaliação e que sejam fundamentadamente reconhecidas como suscetíveis de prejudicar gravemente os candidatos ou de pôr em causa o princípio da igualdade entre candidaturas.

O Decreto-Lei n.º 40/2007, de 20 de fevereiro, instituiu e regulou um concurso especial para acesso ao curso de Medicina por titulares do grau de licenciado e procedeu à alteração do Decreto-Lei n.º 296-A/98, fixando as áreas que devem integrar obrigatoriamente as provas de ingresso no curso de Medicina.

O Decreto-Lei n.º 45/2007, de 23 de fevereiro, promoveu a introdução progressiva do recurso à Internet como forma de divulgar, informar das condições e realizar o concurso nacional de acesso ensino superior.

O Decreto-Lei n.º 90/2008, de 30 de maio, alterou o Decreto-Lei n.º 296-A/98 nos seguintes aspetos: o procedimento de fixação das vagas foi alterado em consonância com o regime fixado pelo artigo 64.º da Lei n.º 62/2007, de 10 de setembro (Regime jurídico das instituições de ensino superior). Estabeleceu que os exames de cursos não portugueses equivalentes ao ensino secundário português podem ser utilizados como provas de ingresso por um prazo idêntico ao fixado pela CNAES para a utilização dos exames nacionais do ensino secundário, de forma a assegurar a igualdade de tratamento entre todos os candidatos, qualquer que seja a sua origem académica. Cometeu à CNAES a aprovação dos regulamentos de realização dos pré-requisitos, sob proposta das instituições de ensino superior que os solicitam, e não apenas a sua homologação, de forma a assegurar uma mais adequada coordenação daqueles. Atribuiu à CNAES competência para fixar os critérios a adotar para a atribuição de um valor à classificação final do ensino secundário aos candidatos cujo diploma de ensino secundário, nos termos da lei, a não inclui. Suprimiu a restrição à inscrição simultânea em dois ciclos de estudos superiores.

III – O processo de candidatura

Assim, em breve síntese, para poder apresentar a candidatura a cada par instituição/curso o aluno deve ser titular de um curso do ensino secundário ou habilitação legalmente equivalente, ter realizado as provas de ingresso fixadas para o par instituição/curso a que se candidata, ter obtido em cada uma das provas de ingresso fixadas para esse par instituição/curso a classificação mínima fixada, ter satisfeito os pré-requisitos quando fixados para ingresso no par instituição/curso e ter obtido, na nota de candidatura, a classificação mínima fixada para o par instituição/curso pelo órgão legal e estatutariamente competente da instituição de ensino superior nos termos do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 296-A/98.

O ingresso no ensino superior público e privado está sujeito a limitações quantitativas decorrentes do número de vagas fixado anualmente pelas instituições de ensino superior para cada um dos seus cursos.

Qualquer curso do ensino secundário permite concorrer ao ingresso em qualquer curso do ensino superior, desde que realizadas as provas de ingresso e, se exigidos, satisfeitos os pré-requisitos.

As provas de ingresso exigidas para cada curso são fixadas por cada instituição de ensino superior [uma ou duas (8)] e realizam-se através dos exames finais nacionais do ensino secundário.

As provas de exame realizadas na 1.ª época do calendário dos exames finais nacionais podem ser utilizadas na candidatura à 1.ª fase do concurso nacional de acesso ao ensino superior. As provas de exame realizadas na 2.ª época só podem ser utilizadas na candidatura à 2.ª fase do concurso nacional de acesso ao ensino superior.

No âmbito do Concurso Nacional, a ordenação dos candidatos é feita tendo em consideração as preferências manifestadas e por ordem decrescente da nota de candidatura, calculada utilizando as classificações finais do ensino secundário, com um peso não inferior a 50 %, das provas de ingresso, com um peso não inferior a 35 %, e dos pré-requisitos, quando exigidos, com um peso não superior a 15 %. A nota mínima de candidatura exigida pela maioria das instituições de ensino superior é de 9,5 valores, sendo, nalguns casos, superior.

No âmbito dos Concursos Institucionais (9), organizados por cada uma das instituições de ensino superior privado para preenchimento das suas vagas, cada candidato terá de se dirigir à instituição pretendida e formalizar a sua candidatura ao par curso/estabelecimento. A ordenação dos candidatos em cada par curso/estabelecimento é feita em obediência às mesmas regras fixadas para o ensino superior público.

O Concurso Nacional, válido para o ano em que se realiza, está organizado em três fases e contempla, para além do contingente geral, os contingentes especiais de vagas para candidatos oriundos das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, para candidatos emigrantes portugueses e familiares que com eles residam, para candidatos que se encontrem a prestar serviço militar efetivo no regime de contrato e para candidatos portadores de deficiência física ou sensorial.

Os candidatos podem concorrer às várias fases do concurso. Aos candidatos colocados na 1.ª fase que concorram à 2.ª fase e nela sejam colocados é automaticamente anulada a colocação na 1.ª fase e, consequentemente, a matrícula e a inscrição realizadas. O procedimento é igual para os candidatos colocados nas 1.ª ou 2.ª fases que concorram à 3.ª fase e nela sejam colocados (10).

A par do regime geral descrito, existem regimes especiais (11) de acesso e ingresso no ensino superior destinados aos estudantes que reúnam condições habilitacionais e pessoais específicas, i.e., aos funcionários portugueses de missão diplomática portuguesa no estrangeiro e seus familiares que os acompanhem; aos cidadãos portugueses bolseiros ou equiparados, do governo português no estrangeiro, funcionários públicos em missão oficial no estrangeiro ou funcionários portugueses da União Europeia (UE) e seus familiares que os acompanhem; aos oficiais do quadro permanente das forças armadas portuguesas, no âmbito da satisfação de necessidades específicas de formação das forças armadas; aos estudantes nacionais dos países africanos de expressão portuguesa bolseiros do governo português, dos governos respetivos, da Fundação Calouste Gulbenkian, ao abrigo de convenções com a UE ou outros; aos funcionários estrangeiros de missão diplomática acreditada em Portugal e seus familiares aqui residentes, em regime de reciprocidade; aos praticantes desportivos de alto rendimento; e aos naturais e filhos de naturais de Timor Leste.

Por fim, existem concursos especiais (12) que regulam a candidatura ao ensino superior público e ao ensino superior privado para estudantes com condições habilitacionais específicas: exame para acesso ao ensino superior de maiores de 23 anos, cursos de especialização tecnológica, cursos técnicos superiores profissionais e outros cursos superior.

Refira-se que o Regulamento dos Regimes de Reingresso e de Mudança de Par Instituição/Curso no Ensino Superior encontra-se previsto na Portaria n.º 181-D/2015, de 19 de junho, alterada pela Portaria n.º 305/2016, de 6 de dezembro.

3 – A situação atual do acesso ao ensino superior

I – Os compromissos do Estado português

Ao longo das últimas décadas o país tem feito um grande investimento no alargamento da oferta de formação superior, designadamente aumentando o número de instituições e de cursos, quer públicos quer privados, e criando um sistema de avaliação da qualidade do ensino, assim realizando o normativo constitucional que associa autonomia e qualidade das instituições (artigo 76.º, n.º 2).

De outro lado, no plano europeu, Portugal comprometeu-se com as metas ambiciosas da Estratégia 2020 definidas pela União Europeia.

Assim, um dos objetivos dos países da União Europeia através da definição desta estratégia visa aumentar a percentagem da população com idade entre 30 e 34 anos que completou o ensino superior para, pelo menos, 40 % em 2020. Este objetivo foi definido com outras metas igualmente quantificadas, designadamente ter 75 % da população de idade compreendida entre 20 e 64 anos empregada e investir 3 % do PIB da UE em I&D.

De acordo com as estatísticas do EUROSTAT relativas a 2015, Portugal não ultrapassa ainda os 32 % da população com idade entre 30 e 34 anos que completou o ensino superior, enquanto na União Europeia (UE28) os diplomados atingiam já os 39 % do referido grupo etário.

As razões que justificam este diferencial entre Portugal e a União Europeia são diversas.

Para além de um decréscimo continuado de candidatos ao sistema de ensino superior desde 2010, devem referir-se, entre estas razões justificativas, as tendências demográficas verificadas nos últimos vinte anos. A perceção social resultante do fluxo de jovens diplomados que nos últimos anos emigraram e procuraram desenvolver as suas atividades profissionais no estrangeiro pode ter transmitido uma mensagem errada acerca das vantagens pessoais e sociais do acesso ao ensino superior.

As estatísticas apontam para que 11.6 % dos diplomados portugueses residia em 2014 no estrangeiro; portanto, mais de 27 mil diplomados na idade entre 30-34 anos reduziram o peso da população com formação superior.

Em termos estruturais, subsiste o expressivo défice de qualificações na população portuguesa (55 % dos adultos entre os 25-64 anos não completaram o ensino secundário, cerca de 45 % da força de trabalho possui poucas ou nenhumas competências digitais e apenas 26 % da população empregada tem formação superior).

Importa também assinalar que é, com alguma frequência, divulgada entre os jovens que frequentam o ensino secundário uma mensagem de falta de interesse na realização de um curso superior. Mensagem errada, desde logo porque o desemprego entre os recém-licenciados é de 26,4 %, inferior à taxa média de desemprego juvenil, de 35 %.

As remunerações são também em média superiores nos adultos habilitados com ensino superior relativamente aos adultos com ensino secundário. De acordo com o relatório Education at a Glance 2015, quanto maior for o nível de educação, maiores são as remunerações relativas.

Enquanto contributo para esta meta da Europa 2020, o Programa Nacional de Reformas de 2016 apresentado por Portugal à União Europeia estima atingir um aumento de mais 20.000 diplomados com o nível de qualificação 5 do Quadro Europeu de Qualificações (Cursos Técnicos Superiores Profissionais), compromisso que acresce ao referido anteriormente quanto à percentagem de pessoas com conclusão de um diploma de ensino superior.

II – Reforma do ensino superior e reformas educativas

O CNE observa que as reformas do sistema educativo apenas devem ser introduzidas com uma ponderação global da sua unidade e tomando em atenção os subsistemas particulares.

Nem sempre se tem observado esta preocupação.

Assim, importa tomar em consideração duas tendências, uma relativa aos processos de reforma do ensino superior, outra atinente ao ensino secundário.

No quadro do que se convencionou designar como Processo de Bolonha, foram introduzidas alterações na estrutura dos cursos de ensino superior conferentes de grau académico e criado um novo diploma de ensino superior, o de técnico superior profissional, correspondente ao ciclo curto daquele Processo.

Os Cursos Técnicos Superiores Profissionais (TeSP), modalidade de ensino superior de curta duração, foram recentemente criados (Decreto-Lei n.º 43/2014, de 18 de março). Têm uma duração normal de quatro semestres (120 ECTS) e organizam-se em três componentes: formação geral e científica, formação técnica e formação em contexto de trabalho (Decreto-Lei n.º 63/2016, de 13 de setembro). Os TeSP correspondem a um perfil profissional com um nível de qualificação 5 do Quadro Europeu de Qualificações, assumindo que o perfil destes técnicos permitirá a sua integração imediata no mercado de trabalho.

III – Reformas do ensino secundário

Estas alterações não conduziram a modificações dos princípios reguladores do regime geral de acesso fixados pelo n.º 2 do artigo 12.º da Lei de Bases do Sistema Educativo que, entre outros aspetos, estabelecem (i) A valorização do percurso educativo do candidato no ensino secundário, nas suas componentes de avaliação contínua e provas nacionais, traduzindo a relevância para o acesso ao ensino superior do sistema de certificação nacional do ensino secundário; (ii) A utilização obrigatória da classificação final do ensino secundário no processo de seriação e (iii) O caráter nacional do processo de candidatura à matrícula e inscrição nos estabelecimentos de ensino superior público, sem prejuízo da realização, em casos devidamente fundamentados, de concursos de natureza local.

De outro lado, as reformas na organização do ensino secundário podem ser caraterizadas por duas diretrizes fundamentais: a adoção do ensino obrigatório até ao 12.º ano, aumentando a escolarização do segmento dos jovens entre os 15 e os 17 anos; e a criação de cursos profissionalizantes, que integram na atualidade cerca de 45 % dos alunos do ensino secundário (DGEEC, 2016).

Contudo e apesar das discussões operadas, o processo de seleção dos estudantes para os cursos de primeiro ciclo (licenciatura e mestrado integrado) continua a utilizar como parâmetro as provas de conclusão e as classificações do ensino secundário.

A entrada no ensino superior continuou a ser predominantemente nacional, de acordo com um concurso nacional e tomando em consideração as classificações dos exames de conclusão do ensino secundário.

Ora, importa tomar em consideração a flexibilização que se observa em muitos países do mundo no que concerne à transição entre ensino secundário e ensino superior. Com designações diversas, designadamente ensino pós-secundário, ensino terciário, ou ainda formação profissional superior, verificamos que as estruturas tradicionais de ensino e de formação são hoje em dia confrontadas com novas exigências relacionadas com a diversidade de percursos dos jovens que concluem o ensino secundário e dos percursos profissionais das pessoas qualificadas, mas, em especial, com a necessidade de se dar resposta adequada às transformações económicas, sociais e culturais trazidas com o processo de globalização.

O alargamento da escolaridade obrigatória para 12 anos é um dos fatores mais relevantes neste processo.

O sistema educativo português, através das suas instituições de educação e de formação, tem que estar preparado para proporcionar aos portugueses respostas adequadas a situações complexas e heterogéneas.

Estes desafios colocam ao legislador a necessidade de conciliar com os princípios da igualdade e da equidade a diversidade e flexibilidade que as regras do acesso ao ensino superior devem ter de forma a responder às necessidades da sociedade, às ofertas das instituições de ensino superior e aos perfis de conclusão do ensino secundário.

4 – Objetivos e vias propostas de reforma

Traçado o contexto do regime de acesso ao ensino superior, podemos agora proceder a uma apreciação na especialidade de algumas das questões que o Relatório da Comissão colocou para debate. Especial atenção é dedicada aos aspetos que merecem do CNE algumas ponderações ou reservas.

I – Aumentar o número de estudantes do ensino superior através de novas vias de acesso ao ensino superior

A situação atual de acesso ao ensino superior, já acima descrita, permitiu identificar problemas particulares quer de estudantes que concluem o secundário mas não prosseguem estudos, quer de estudantes que abandonam prematuramente os estudos superiores. Assim, a população ativa empregada que nunca frequentou o ensino superior é um dos novos públicos que deve ser captado para o ensino superior. Outro, é o dos antigos estudantes do ensino superior que abandonaram sem concluir os estudos superiores. Do mesmo modo, também o ensino superior tem vindo a diversificar a sua oferta de cursos e formações, respondendo às solicitações da sociedade e da economia.

Verificado que uma percentagem muito elevada dos jovens que concluíram o ensino secundário profissional não prossegue os seus estudos e verificado também que os beneficiários dos apoios da Ação Social têm uma taxa de abandono mais pequena, torna-se claro que se deve incentivar os estudantes que concluíram o ensino secundário profissional a prosseguirem os estudos, se for essa a sua vocação.

Contudo, a criação de um concurso especial de acesso ao ensino superior para os diplomados dos cursos profissionalizantes (cursos profissionais e cursos de aprendizagem), não deve ser feita de tal modo que diminua a importância do concurso de acesso aos cursos técnicos superiores profissionais, recentemente instituídos. A consolidação destes cursos curtos depende também do seu reconhecimento social e académico, não apenas profissional.

Na realidade, os titulares de um diploma de técnico superior profissional podem posteriormente aceder e ingressar nos ciclos de estudos de licenciatura e integrados de mestrado. Neste sentido, a mensagem do Estado e da sociedade para os estudantes do ensino secundário, especialmente profissional, não deve ser de desvalorização social dos novos cursos superiores curtos.

De outro lado e a ser criado, o concurso especial para estudantes do ensino superior profissional não deve ser específico das instituições de ensino superior politécnico, podendo ainda equacionar-se deixar à autonomia das instituições a sua abertura e a fixação de uma quota do número total de vagas.

II – Flexibilizar o acesso ao ensino superior. Ensino artístico

Os cursos artísticos especializados correspondem a um ensino que permite valorizar aptidões e desenvolver talentos artísticos nas seguintes áreas: Artes Visuais e Audiovisuais, Dança, Música, Canto e Canto Gregoriano. Os cursos estão organizados na dupla perspetiva da inserção no mercado de trabalho e do prosseguimento de estudos.

A natureza distintiva quer dos cursos do ensino secundário quer do ensino superior pode justificar soluções igualmente diferenciadas no regime de acesso e de ingresso.

Verificado que os diplomados dos cursos artísticos especializados são obrigados a submeter-se a avaliações frequentemente alheadas dos itinerários escolares frequentados, o CNE concorda com a criação de uma via especifica de acesso ao ensino superior para os diplomados dos cursos artísticos especializados, com a ponderação da unidade e coerência do sistema de acesso ao ensino superior. Esta ponderação deve incluir tanto a situação dos alunos que descobrem novas vocações de natureza artística no final do ensino secundário como aqueles que, já admitidos ao ensino superior, pretendem mudar de área científica e de curso.

III – Flexibilizar o acesso ao ensino superior. TESP

Se se compreendem as vantagens inerentes à flexibilização do regime de acesso ao ensino superior, em função dos elementos acima referidos, a criação de um concurso nacional (ou uma componente do atual concurso nacional de acesso) para acesso aos cursos técnicos superiores profissionais (TeSP) do ensino superior politécnico público, suscita algumas reservas, resultantes das questões acima enunciadas.

Criados há pouco tempo, é necessário entender como vão evoluir, em função da procura social e da capacidade das instituições corresponderem às aspirações das pessoas e às necessidades da sociedade e da economia.

IV – A conclusão do ensino secundário e a autonomia das instituições do ensino superior

A opção das instituições de ensino superior pela utilização dos exames nacionais do ensino secundário como provas de ingresso implicou uma sobrevalorização destes. Como se observou acima, a conjugação da classificação final do ensino secundário e dos resultados nas provas de ingresso que são adotadas para acesso a determinado curso conduz a que os exames finais do secundário tenham uma ponderação na determinação da nota de ingresso sempre acima dos 45 %, podendo ser de 60 %.

Ora, se a conclusão do ensino secundário é o requisito de acesso ao ensino superior, este deve estar dissociado da fixação de classificações mínimas nos exames.

Entende-se que deve caber à autonomia das instituições do ensino superior valorizar o percurso educativo do ensino secundário. Ao fazê-lo, devem ter em conta que há candidatos que ficam em pior posição no concurso nacional de acesso do que outros, com menores classificações globais, por terem obtido uma classificação inferior em um dos exames que conta adicionalmente como prova de ingresso.

Na prática, tem-se verificado que candidatos em que uma das suas provas de exame de secundário foi inferior à classificação mínima de acesso foram ultrapassados por outros candidatos, com menores classificações globais.

De outro lado, reconhece-se que a fixação de classificações mínimas nos exames nacionais tem sido entendida como um sinal de seriedade e de confiança no próprio sistema de exames.

Contudo, entende-se que esta sobrevalorização de uma só prova, em detrimento de todo o percurso do estudante do ensino secundário, não está de acordo com o requisito essencial de acesso ao ensino superior, que é a conclusão do ensino secundário.

V – As classificações internas e externas do ensino secundário

O Relatório da Comissão observa que embora seja reduzido o número de escolas que apresentam um afastamento significativo relativamente ao comportamento médio nacional na atribuição das classificações internas, essas diferenciações são significativas, persistentes no tempo e têm padrões regionais definidos e que a limitação de entradas nalguns cursos, por força do numerus clausus, pode, em certos casos, prejudicar a concretização das opções de alguns candidatos ao ensino superior que, por décimas, se vêm ultrapassados por outros candidatos.

O CNE já teve ocasião de chamar a atenção nos relatórios Estado da Educação desde 2013 para a existência de escolas que apresentam resultados médios de classificação interna que indicam haver subvalorização ou sobrevalorização dessas classificações face às externas.

Neste sentido, justifica-se uma ponderação aprofundada acerca da introdução de procedimentos de normalização das classificações dos exames finais do ensino secundário.

É entendimento do CNE que estas ponderações devem ser especialmente tomadas em conta no momento da preparação dos exames nacionais e na condução de inspeções aos estabelecimentos de ensino secundário. Concorda-se com o objetivo de evitar variações anuais bruscas, resultantes do nível de dificuldade dos exames, através da ponderação do processo de classificação, de modo a que as referidas variações não se venham refletir nas classificações finais dos alunos. Mas este objetivo tem que ser uma preocupação primeira do Ministério da Educação.

Finalmente, não se pode deixar de alertar para a importância da transparência dos procedimentos, condição para a confiança dos estudantes e das famílias no processo de seleção.

VI – Contingentes especiais

Os regimes excecionais de acesso ao ensino superior apenas são admissíveis quando tenham justificação constitucional bastante.

Como o Relatório sublinha, perante o alargamento do sistema de apoios sociais e a convergência dos sistemas de ensino superior (após a reforma de Bolonha), pode questionar-se a pertinência da manutenção de alguns dos referidos contingentes especiais.

Na verdade, não se vê fundamento para manter regimes especiais não expressamente autorizados pela Constituição, em função dos já referidos princípios constitucionais de acesso ao ensino superior.

Já a situação das pessoas vulneráveis merece especial atenção. A concretização da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência exige medidas positivas do Estado, no sentido de criar condições, não apenas para o acesso, mas para a sua frequência em condições de efetiva igualdade no sucesso educativo, ou, nas palavras da Convenção, visando o pleno desenvolvimento do potencial humano e sentido de dignidade e autoestima e ao fortalecimento do respeito pelos direitos humanos, liberdades fundamentais e diversidade humana.

VII – A questão do numerus clausus

A Constituição Portuguesa consagra, como referido, o objetivo de elevação do nível científico e cultural do país, enquanto a Lei de Bases do Sistema Educativo aponta para a eliminação progressiva de restrições quantitativas de caráter global no acesso ao ensino superior. Ao apontar para o fim dos regimes de numerus clausus, em coerência com o desígnio constitucional, deve ponderar-se se estão reunidas as condições para deixar à autonomia das instituições planear a organização dos cursos que consideram adequados à sua missão e, de outro lado, deixar aos interessados, de acordo com as suas inspirações e inclinações, a livre escolha dos cursos que pretendem frequentar.

No entanto, compreende-se que este objetivo possa ter um peso distinto consoante se esteja a referir o ensino superior público ou o ensino superior particular e cooperativo.

No caso do ensino superior público, cabe ao Estado planear o respetivo desenvolvimento, de acordo com os recursos disponíveis e no respeito pela autonomia das instituições. O conceito constitucional de necessidade do país em quadros qualificados traduz-se também na questão do financiamento público: o Estado deve ter a possibilidade de planear e decidir de que modo pretende utilizar recursos financeiros escassos (contratação de professores e de investigadores, construção ou ampliação de novas instalações, etc.), igualmente considerando, entre outras, questões como as assimetrias regionais, a coesão territorial, e a condição económica e social das famílias.

No contexto do aprofundamento da reforma do Estado, esse planeamento passa pela contratualização de objetivos com as instituições do ensino superior.

Já no caso do ensino superior particular, deve entender-se que não cabe ao Estado planear o respetivo desenvolvimento. Não apenas porque tal seria contrário ao princípio da autonomia das universidades e outras instituições do ensino superior; mas porque as dimensões dos direitos constitucionais de propriedade privada, de direção dos meios de produção, ao lado da livre e leal concorrência entre as instituições impõem uma resposta distinta. Dentro dos critérios objetivos dos recursos das instituições – bibliotecas e laboratórios, salas de aula, docentes qualificados, entre outros – deve caber às instituições propor e definir o número de estudantes que entendem admitir para os cursos que lecionam.

VIII – Incentivar a utilização do ensino e da formação a distância

Não existe, no Relatório do grupo de trabalho, referência especial acerca da situação da educação e da formação a distância.

Sem embargo disso, o Conselho Nacional de Educação considera que a matéria merece especial atenção, como forma de atrair novos estudantes para o ensino superior, de contribuir para a formação ao longo da vida e de refletir novos modelos pedagógicos adicionais ao ensino presencial.

Na verdade, é essa a situação em muitos países europeus.

Nas recomendações relativas «ao nível de digitalização dos serviços responsáveis pela adaptação das competências ao mercado de trabalho», as autoridades europeias no Relatório relativo a Portugal de 2016, aconselham, ao nível dos sistemas de educação e formação e no ensino superior, a integração de instrumentos digitais e das tecnologias de informação quer para melhorar e adaptar os métodos e os recursos pedagógicos, seja na vertente de ensino presencial, seja na vertente de ensino a distância, quer para incrementar os sistemas de gestão e partilha de informação, indispensáveis à melhoria da definição, condução e execução destas políticas públicas.

O número de pessoas em formação em instituições e cursos a distância na Europa deve ser sublinhado.

A título de exemplo, atente-se na situação do Reino de Espanha: do total de mais de um milhão e quinhentos mil estudantes do ensino superior, cerca de duzentos e vinte mil frequentavam universidades não presenciais (13).

Este é o momento adequado para planear e fazer esse investimento.

Não apenas pela qualificação dos docentes das instituições universitárias e politécnicas portuguesas e pela qualidade das instituições, mas também porque esta é uma tendência no ensino e na formação superior a que Portugal não deve ficar alheado. Aliás, os fortes investimentos em instituições científicas, designadamente na FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia) e na sua unidade FCCN (Fundação para a Computação Científica Nacional), devem ser aproveitados pelo sistema de ensino.

Não cabe ao CNE, neste momento, equacionar o modelo institucional da Universidade Aberta, nem possíveis modelos formativos, designadamente o chamado e-b-learning e os cursos disponíveis na Internet (mooc); apenas sublinhar que o potencial do ensino e da formação a distância não está a ser suficientemente aproveitado e pode revelar-se uma ferramenta essencial para captar novos públicos para o ensino superior e para dinamizar novas estratégias formativas que permitam conciliar a vida profissional com a continuação dos estudos. Deste modo, para além de contribuir para uma cidadania ativa dos cidadãos, através da formação ao longo da vida, pode ainda ser um forte incentivo à presença do ensino português no mundo.

Considerando que este tipo de ensino não tem regulamentação específica, o seu correto enquadramento deve passar pela aprovação de legislação que estabeleça os requisitos de criação, funcionamento e acreditação dos respetivos cursos.

5 – Recomendações

Em síntese, formulam-se as seguintes recomendações:

1 – A eventual criação de um concurso especial de acesso ao ensino superior para os diplomados dos cursos profissionalizantes é prematura e não deve ser feita de tal modo que diminua a importância do concurso de acesso aos cursos técnicos superiores profissionais, recentemente instituídos, nem deve ser específico das instituições de ensino superior politécnico.

2 – O CNE vê como positiva a criação de uma via especifica de acesso ao ensino superior para os diplomados dos cursos artísticos especializados, com a ponderação da unidade e coerência do sistema de acesso ao ensino superior e com a revogação da norma legal que determina a realização de avaliação sumativa externa por esses diplomados que pretendam prosseguir estudos.

3 – A criação de um concurso nacional para acesso aos cursos técnicos superiores profissionais (TeSP) do ensino superior politécnico público suscita algumas reservas pelo que deve ser objeto de ponderação adicional.

4 – Sendo o requisito de acesso ao ensino superior a conclusão do ensino secundário, este deve estar dissociado da fixação de classificações mínimas nos exames. Antes, deve poder confiar-se nas instituições do ensino secundário, quanto às classificações que atribuem, e nas instituições do ensino superior, pois a estas sempre caberá formar e avaliar os estudantes que ingressam.

5 – O CNE considera que a proposta de normalização das classificações dos exames finais do ensino secundário necessita de reflexão acrescida.

6 – A utilização, no regime geral de acesso, das classificações internas do ensino secundário que apresentem desalinhamentos excessivos e persistentes necessita de verificação por parte da Inspeção-Geral da Educação e Ciência.

7 – A manutenção dos contingentes especiais do concurso nacional de acesso deve restringir-se aos casos que tenham justificação constitucional.

8 – No processo de eliminação progressiva do regime de numerus clausus para que aponta a LBSE deve atender-se, não apenas ao direito à educação dos portugueses e à autonomia científica e pedagógica das instituições de ensino superior quanto à organização dos cursos, como, entre outros fatores, à correção das assimetrias regionais e à coesão territorial do país.

9 – O CNE considera que a formação e o ensino a distância devem ser dinamizados pelas instituições de ensino superior, devendo ainda cuidar-se da regulamentação própria destas matérias.

10 – O Conselho Nacional de Educação reconhece a necessidade de melhorar o sistema de acesso ao ensino superior e considera que o Relatório sobre a avaliação do acesso ao ensino superior (diagnóstico e questões para debate), apresentado pelo grupo de trabalho para a avaliação do acesso ao ensino superior criado pelo Despacho n.º 6930/2016 MCTES, de 25 de maio, é um importante contributo nesse sentido. O Conselho manifesta a sua disponibilidade para aprofundar a reflexão e o debate na procura de consensos alargados, tomando como ponto de partida as recomendações refletidas no presente Parecer.

( 1) Importa ter presente que a CRP consagrou em títulos distintos – os Títulos II e III da Parte I – os direitos, liberdades e garantias e os direitos económicos, sociais e culturais.

(2) O direito à educação encontra-se previsto em todas as constituições portuguesas, cf. os artigos 237.º a 239.º da Constituição de 1822, 145.º da Carta Constitucional de 1826, 28.º e 29.º da Constituição de 1838, 3.º n.os 10 e 11 da Constituição de 1911 e 42.º e 43.º da Constituição de 1933.

(3) Alterada pelas Leis n.º 115/97, de 19 de setembro, n.º 49/2005, de 31 de agosto, e n.º 85/2009, de 27 de agosto

(4) Alterado pelos Decretos-Lei n.os 140/89, 33/90, 276/90 e 379/91.

(5) Alterado pelos Decretos-Lei n.º 53/93 e 318/95.

(6) Alterado pelo Decreto-Lei n.º 75/97.

(7) Republicado pelo Decreto-Lei n.º 90/2008, de 30 de maio, retificado pela Declaração de Retificação n.º 32-C/2008, de 16 de junho, incorporando as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei n.º 99/99, de 30 de março, n.º 26/2003, de 7 de fevereiro, n.º 76/2004, de 27 de março, n.º 158/2004, de 30 de junho, n.º 147-A/2006, de 31 de julho, n.º 40/2007, de 20 de fevereiro e n.º 45/2007, de 23 de fevereiro.

(8) Excetua-se o caso do curso de Medicina, com três provas.

(9) Cf. Decreto-Lei n.º 296-A/98 (alterado), que aprova o regime de acesso e ingresso no ensino superior, e a Portaria n.º 199-A/2016, de 20 de julho, que aprova o regulamento geral dos concursos institucionais para ingresso nos cursos ministrados em estabelecimentos de ensino superior privado para a matrícula e inscrição no ano letivo de 2016-2017

(10) Cf. Portaria n.º 199-B/2016, de 20 de julho – Aprova o Regulamento do Concurso Nacional de Acesso e Ingresso no Ensino Superior Público para a Matrícula e Inscrição no Ano Letivo de 2016-2017. Informações completas sobre a candidatura ao ensino superior podem ser consultadas na página da direção-geral do ensino superior em www.dges.pt.

(11) Cf. Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, que regula os regimes especiais de acesso e ingresso no ensino superior; Portaria n.º 854-B/99, de 4 de outubro, que aprova o regulamento dos regimes especiais de acesso ao ensino superior; Decreto n.º 1/97, de 3 de janeiro, que aprova a convenção relativa ao estatuto das escolas europeias; Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro, que estabelece as medidas específicas de apoio ao desenvolvimento do desporto de alto rendimento e procede à primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro

(12) Cf. Decreto-Lei n.º 113/2014, de 16 de julho, que regula os concursos especiais de acesso e ingresso no ensino superior.

(13) Para mais informações, consultar: http://www.mecd.gob.es/dms/mecd/educacion-mecd/areas-educacion/universidades/estadisticas-informes/datos-cifras/datos-y-cifras-SUE2015-16-web.pdf

20 de março de 2017. – O Presidente, José David Gomes Justino.

Declaração de Voto

Na sessão plenária do Conselho Nacional de Educação de 20 de março de 2017, abstive-me na votação do parecer sobre o acesso ao Ensino Superior, por um motivo de fundo. Considerando a situação atual de desenvolvimento do ensino secundário e os sucessivos problemas que o sistema de acesso ao ensino superior tem demonstrado, entendo que o parecer deveria ter sido mais claro e veemente na afirmação da necessidade de se fazer uma reflexão profunda sobre o sistema de acesso ao ensino superior. A mera melhoria do sistema atual é insuficiente. Este foi estabelecido quando o ensino secundário tinha como função central preparar os alunos para o ensino superior. Hoje, o ensino secundário é o nível obrigatório pelo que a diversidade de ofertas e percursos aumentou e, desejavelmente, aumentará mais. A manutenção do sistema de acesso ao superior tal como está, fundando no secundário, é limitador do secundário, pouco adequado ao ensino superior e cria incentivos perversos (ao nível da sala de aula, da escola, da administração e também ao nível político). Esta não é uma questão menor e fundamenta a minha abstenção.

Rodrigo Queiroz e Melo.»